Gustavo Cabral

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Opinião

População negra é a que mais morre de câncer; mas como mudar isso?

Quando discutimos doenças e os fatores étnicos, em especial ao falar da população negra, pensamos imediatamente em algumas problemas que mais afetam essa população, como a anemia falciforme, a hipertensão e o diabetes. Claro que essas condições merecem atenção, mas não podemos focar apenas nelas.

Por isso, gostaria de trazer algumas informações publicadas na revista "A Cancer Journal for Clinicians", com dados estatísticos de câncer na população negra nos Estados Unidos, e fazer um paralelo com a situação no Brasil.

O primeiro ponto para chamar a atenção é o desfecho do câncer nessa população, pois os afro-americanos têm uma carga desproporcional de mortalidade, comparados a qualquer outro grupo racial/étnico, para a maioria dos tumores.

Nos últimos cinco anos apresentados nesse estudo, os homens negros tiveram 6% mais câncer, porém, a mortalidade foi 19% maior do que os homens brancos em geral.

Quando os dados são detalhados, observa-se que o risco foi aproximadamente duas vezes maior de morte por mieloma, câncer do estômago e câncer da próstata.

Diferentemente dos homens, de modo geral, as mulheres negras têm uma taxa de 8% menor na incidência de câncer, comparado às mulheres brancas. Porém, mesmo com uma menor incidência, a mortalidade das mulheres negras devido ao câncer é 12% maior do que as mulheres brancas.

É importante chamar a atenção para o fato de que o câncer de mama mata 41% mais mulheres negras do que mulheres brancas, mesmo com taxas de incidência semelhantes ou até mais baixas.

Por que essa disparidade?

Parece repetitivo, mas não tem como olharmos apenas para as questões médicas e científicas, pois essa disparidade tem total relação com as questões políticas e sociais, que vão direcionar para um diagnóstico precoce e o acesso ao tratamento de câncer.

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Ao mesmo tempo, paremos de hipocrisia quando jogamos a responsabilidade, em sua grande maioria, para a sociedade, pois fazermos isso "sem perceber". Falo isso pois soa bonito dizer que para evitar o câncer a pessoa precisa praticar esporte pelo menos três a quatro vezes por semana, não consumir álcool, não fumar, comer cinco porções ao dia de frutas, verduras e legumes e ter que seguir uma série de hábitos saudáveis.

Embora essa e outras orientações sejam necessárias, isso serve, em sua grande maioria, para a população de classe média e alta.

O pobre, que acorda cedinho para pegar transporte público lotado, trabalha pesado e volta para casa supercansado dificilmente tem condições de seguir todos os hábitos saudáveis recomendados

Além disso, muitas vezes, fazer o que é contraindicado para o combater o câncer é um momento de alívio para grande parte da população brasileira —como tomar sua cervejinha, comer um doce ou um torresminho.

Vale ressaltar que não tenho qualquer intenção de ir de encontro ao que a ciência mostra, pelo contrário. Mas, vindo da origem socioeconomicamente baixa que eu venho, não tenho como olhar apenas como cientista. Por isso afirmo que a gente precisa é de uma agenda menos elitista, além de parar de arrotar regras e palavras que soam bonitinhas na TV e nas redes sociais.

A gente precisa de acessibilidade e condições sociais dignas, caso contrário isso só tende a piorar. As intervenções devem ser específicas e realistas, com orientações que cheguem na população de forma a ser aceita, além de oferecermos um diagnóstico preciso e o tratamento adequado.

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Vamos sair dos dados americanos e trazer para a situação brasileira. Um estudo publicado na "Revista Brasileira de Cancerologia" diz que "as desigualdades raciais e socioeconômicas refletem nas ações de acessibilidade ao cuidado oncológico, maioritariamente na detecção precoce. Independentemente do tipo de câncer e das formas de diagnóstico e de tratamento, é inegável a dificuldade do paciente negro aos cuidados oncológicos por razões de natureza social e econômica".

Outro artigo sobre as disparidades sociais na assistência à saúde da população afro-brasileira, publicado na revista "Archives of Medicine", mostra que certas doenças crônicas são mais comuns na população afro-brasileira, como a hipertensão, obesidade e insuficiência renal crônica. Além disso, problemas como cárie dentária, transtornos mentais, tabagismo durante a gravidez e anemia afetam mais a população afro-brasileira.

Isso retorna para o que já escrevi: não adianta falar que os hábitos estão errados sem ter um olhar mais realista da situação. Somente assim pode haver uma agenda sociopolítica mais incisiva e precisa, pois a semana da "consciência negra" e a vida da população afro-brasileira perpassa pela consciência da saúde desta população que mais se ferra no Brasil.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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