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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O samba como um espaço para trocas intergeracionais

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Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

06/12/2021 04h00

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"Eu vim de lá, eu vim de lá, pequenininho
Mas eu vim de lá, pequenininho
Alguém me avisou
Pra pisar nesse chão devagarinho..."

(Música: Alguém me avisou. Compositora e cantora: Ivone Lara)

No dia 2 de dezembro, comemora-se o dia do samba, um dos ritmos brasileiros que mais me encanta e que é uma das manifestações culturais nacionais mais conhecidas no mundo. Quando se ouve um bom samba, percebe-se que intérpretes, músicos e compositores conseguiram traduzir e colocar melodia nos fatos cotidianos ou marcantes de nossas vidas.

"Sempre fui obediente
Mas não pude resistir
Foi numa roda de samba
Que juntei-me aos bambas
Pra me distrair..."

(Música: Alguém me avisou. Compositora e cantora: Ivone Lara)

Nas rodas de samba desaparecem, ainda que por alguns instantes, as grandes desigualdades sociais e, naquele espaço e tempo sagrados, pobres e ricos se abraçam e cantam refrões sem qualquer desafino.

Há também no samba um grande e privilegiado espaço para pessoas idosas, sem qualquer distinção de cor, gênero ou classe social. Clementina de Jesus, Aniceto do Império, Beth Carvalho, Almir Guineto, Reinaldo, Leci Brandão, Ivone Lara, Cartola, Zeca Pagodinho, Nei Lopes, Martinho da Vila, Jorge Aragão e tantas outras que, se fisicamente ou não entre nós, são ovacionadas e suas músicas ou interpretações geram coros lindíssimos produzidos por quem as ouvem.

Em casa, são essas pessoas idosas que cantam nos rádios e celulares, afastando os maus pensamentos de quem ali se encontra sozinho, preocupado, procurando entender o motivo da recente demissão, do rompimento de um relacionamento, da discussão do dia anterior. Mas são também os bons sambas que descobrem os melhores sorrisos e risadas nas festas familiares, de aniversário e, para alguns, até para celebrações de luto.

Um samba bem cantado é capaz de ajudar na nossa passagem desse mundo para um outro, e nos remete para uma outra forma de interpretação do significado da vida e da continuidade daquela pessoa entre seus entes e amigos queridos. O samba imortaliza velhos e velhas.

"Energia nuclear
O homem subiu à lua
É o que se ouve falar
Mas a fome continua

É o progresso, tia Clementina
Trouxe tanta confusão
Um litro de gasolina
Por cem gramas de feijão..."

(Música: Não Vadeia. Cantora: Clementina de Jesus. Compositor: Antônio Candeia Filho)

No samba há muitos saberes adequadamente traduzidos para a compreensão de todas as pessoas, não importando seu nível de escolaridade. Há uma "filosofia do samba", uma filosofia de sambistas. E aqui, quem é mais velho ou mais velha, é a pessoa mais sábia, que mais anos tem de observação dos fatos, das pessoas, dos acertos e erros nas relações humanas e da importância da espiritualidade em nossas vidas.

"Qual é a pedra mais doce? É rapadura
Qual é a defesa do banguela? É dentadura
Cite uma cidade do oriente? Singapura
Quando o malandro perde o conceito? Quando dedura
Qual é a ave de perna mais fina? É saracura...

(Música: Inteligência. Composição e cantor: Aniceto do Império)

Zeca Pagodinho em ensaio fotográfico de 2019 - Zô Guimarães/Folhapress - Zô Guimarães/Folhapress
Zeca Pagodinho em ensaio fotográfico de 2019
Imagem: Zô Guimarães/Folhapress

Nas músicas como a de Aniceto se encontram as rimas, os fatos e a sabedoria que não é tão legitimada pelas Academias dos "Intelectuais". Conceição Evaristo não está sozinha quando não é reconhecida como grande escritora e pensadora. Muitas velhas e velhos do samba não tiveram sua intelectualidade reconhecida e com a dignidade e valorização que merecem. Suas obras ainda não foram incorporadas e disseminadas para o conhecimento de toda a população brasileira.

O samba junto com a pedagogia de Paulo Freire poderiam ser forças revolucionárias nesse Brasil que assume, parcialmente, sua diversidade cultural! Espaços onde há samba, nota-se o respeito, as trocas e afetos intergeracionais, da criança à pessoa mais velha.

Nas ruas, bairros ou eventos onde se vive o samba, abre-se espaços físicos para que velhas e velhos entrem, para que ocupem os melhores lugares e que não sofram empurrões ou qualquer outro agravo à sua saúde ou moral.

Nas grandes ou pequenas festas, um velho que começa a batucar uma caixinha de fósforo já é digno dos holofotes e ouvidos de todas as pessoas que ali estão. Se a mais velha resolve dançar, ainda que com as dores nos quadris ou na região lombar de tanto lavar louça durante uma vida, há até a interrupção do que se está cozinhando no fogão para contemplar aquele momento de pura alegria e conexão dos mundos físico e qualquer outro que você acredite que exista.

A Velha Guarda, composta pelas mais velhas e mais velhos de uma comunidade que incorpora o samba como parte do seu estilo de vida e construção de sujeitos prontos para o mundo, propaga uma possibilidade de respeito e valorização das pessoas idosas.

Elas são as mais importantes, as detentoras da vivência, da sabedoria, do gingado, do toque exato dos instrumentos, da voz treinada, do verso que encaixa e, assim como griots, que são pessoas contadoras de histórias repletas de ensinamentos para a vida, falam também das verdades atemporais, ou revelam todas as manifestações de discriminações, desigualdades e injustiças vividas no Brasil para que, quem ali as escutam, saibam se defender, desviar ou ultrapassá-las.

Pessoas velhas no samba são reverenciadas e receber uma benção, um elogio, um abraço ou um momento de dança ou de conversa é um fato para se honrar, agradecer e, em tempos de selfies, fazer uma bem bonita.

Nesse dia do samba vale reforçar o quanto a intergeracionalidade é capaz de manter ativa a vida de muitas pessoas idosas que se sentem importantes e essenciais para o crescimento de uma comunidade. Podem ensinar jovens, adultos e crianças, dá a possibilidade para o próprio aprendizado, para o cuidado das boas relações socias e, principalmente, de serem notadas como cidadãos e cidadãs. Essa é uma capacidade do samba e que não caberia em nenhum refrão de qualquer música.

O samba se agigantou durante a pandemia. Ajudou a salvar muitas vidas, seja de quem se aglomerava dentro de casa e sofria, mentalmente e financeiramente, de quem passava fome e viu comunidades de sambistas promoverem distribuições de cestas básicas, de quem queria um motivo para sorrir diante de tanta desgraça, de quem pensou em antecipar sua saída do "palco da vida" e viu, naquele partido alto, um trecho de música que o fez ficar aqui entre nós e já programando sua reestreia na reabertura dos espaços públicos.

Mais recentemente, o idoso, cantor e compositor Caetano Veloso cantou:

"Vai chegando que a gente vai chegar
Vê se rola, se tudo vai rolar
Só que sem samba não dá
Só que sem samba não dá...
Só que sem samba..."

(Música: Sem samba não dá. Composição: Caetano Veloso)

Com respeito a todos os estilos musicais, mas sem samba o Brasil fica incompleto, fica sem a plenitude da sua identidade. Aqui há a inclusão social que muitas instituições sonham em fazer. Aqui a faixa etária não faz muito sentido porque entende-se velho e velha quem acumulou fatos e conquistas. E outra métrica sobre viver bem e estar bem! Todas e todos se ouvem, se respeitam e vivem a intergeracionalidade.

Viva o samba!