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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que a juventude pensa da própria ancestralidade?

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Imagem: iStock

Colunista de VivaBem

28/11/2022 04h00

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Tudo começou com um convite feito pela minha irmã, professora de uma escola pública, para conversar com adolescentes.

Até aí tudo bem, pois gosto de conversar com pessoas que, comumente, não pensam sobre o envelhecimento, seja o próprio como o das outras pessoas ao seu redor.

- Mas qual o assunto, Débora?

- Ancestralidade.

E é assim que começa o meu preparo-desafio para conversar com quatro salas de adolescentes, entre 14 a 18 anos. No primeiro momento achei que fosse para abordar um dos meus textos, mas talvez não houvesse tempo e disposição para que as turmas lessem e o local da atividade não seria adequado para debatê-lo.

Depois, pensei em usar alguns recursos tecnológicos, alguns aplicativos que pudessem aumentar as chances de comunicação e diálogo. Afinal, "celularquês" é um dos idiomas mais falado por esse grupo social.

- Mas lá não vai ter internet para todas as pessoas, lembra minha irmã.

Isso seria um erro grave para quem defende a redução e a eliminação das desigualdades sociais. Opção imediatamente descartada.

O evento ocorreria no período da noite, um bom período para comer a merenda que tinha arroz, feijão e carne, conversar com os amigos, trocar uns beijos com quem se quer ou ajustar a programação para o final de semana.

Decido que a atividade será no modo oralidade, ou seja, conversando com todas as pessoas, procurando brechas e oportunidades para, com respeito, entrar na mente e nos corações de quem estava naquela quadra, onde até uma maritaca resolveu ficar para assistir.

Ao fundo, projetada na parede da quadra, uma foto de Mano Brown e Emicida que ilustrava um texto que escrevi sobre a importância da ancestralidade em suas vidas.

Começo a conversa sobre a ancestralidade pedindo para que desenhassem, a partir de algumas orientações e sugestões minhas, as pessoas integrantes de suas famílias, todas aquelas importantes ou necessárias para um bom ou mínimo funcionamento da casa e de suas vidas.

E usar da oralidade é uma das formas utilizadas por muitos povos africanos e que ainda encontra no Brasil descendentes com essa habilidade utilizada para a transmissão de valores, crenças e alguns ensinamentos. E tudo isso, desde os séculos passados, é magistralmente contado pelos griots, grandes contadores de história.

Estava começando, de fato, o papo sobre a ancestralidade.

Depois, foi hora de pensar nas pessoas queridas, mas que não são por laços biológicos. E é aí que a conversa sobre ancestralidade começa a se aprofundar.

- Representem aí as pessoas que são importantes para vocês!

- Mas quem?

Essa frase já foi uma importante reflexão para saber sobre a história que cada adolescente tinha sobre seus antepassados, sobre as pessoas que vieram ao mundo antes dela.

- Vejam aí quem foi que cuidou de você, mesmo que hoje você já não goste tanto dela, mas ela nunca deixou de te amar e que sempre foi do jeito dela: discreto, tímido, extrovertido, doutrinador, rígido, enfim, do jeito que sabia ou que tentava demonstrar!

E eu tinha um desafio de trazer toda a turma para a conversa. Aí lembrei da frase de um grande amigo e professor, Eduardo Filoni:

- Alê, durante uma aula, nunca se culpe por não agradar a todos!

Eu sempre entendi, mas qual professor ou professora que não fica feliz quando nota a interação de toda uma sala diante de um assunto abordado naquele espaço?

E com isso pergunto para os adolescentes do gênero masculino, que pareciam não conseguir ou querer se concentrarem nas suas ancestralidades:

- "Tá difícil lembrar de um homem que conviveu com vocês na infância, né?" Muitos morreram, muitos saíram de casa, muitos só pensam em drogas, e outros foram morar com outras famílias e deixaram vocês sem qualquer aviso. Foi isso?

Assim, Edu, leitoras e leitores, o silêncio, foco e aproximação começam a aumentar. Não todos, infelizmente, mas uma parte importante, uma quantidade que espero que tenham pensado, talvez pela primeira vez, quem foram seus mais velhos, considerando pais, mães, tias, tios ou primas e primos mais velhos.

Algumas adolescentes já estavam em conexão com seus ancestrais e o choro ali, denunciado por lágrimas que escorriam por um ou dois olhos, já explicitava essa conexão. Outras já sorriam e associavam um sinal de positivo, realizado pelo pescoço. E eram sorrisos bonitos, semelhantes aqueles de seus mais velhos, imagino.

Sugeri situações das mais diversas para que pudessem lembrar dessas pessoas queridas:

- Uma comida?

- Uma situação?!

- Um cheiro?

- Um lugar?

E aí foram se emocionando cada vez mais, permitindo-se serem atravessados pelo meu afeto, pelo meu desejo para que se conectassem com o seu passado para saber do seu presente e a desenhar os seus futuros.

Não se vive sem passado e muitas e muitos daqueles adolescentes foram, sistematicamente, criados para negligenciar e não ter orgulho das pessoas mais velhas. Aprenderam que olhar o mundo na perspectiva do "copo meio vazio" é o correto, o padrão.

Esqueceram-se de que mães, pais, tias, tios, avós, bisavós, tataravós, tios-avôs e primos mais velhos sempre doaram suas vidas e suas oportunidades para que estivessem ali naquela quadra, aprendendo, socializando e não ainda trabalhando ou em casa, sem qualquer energia porque o dia tinha sido exaustivo, mais uma vez.

Esses adolescentes foram, então, entendendo como eram constituídos: por sonhos, lutas, suor, humilhações sofridas, pela ignorância de quem não via o momento que seus mais novos e mais novas os ajudassem a sair dessa situação e fizessem as leituras daquele documento, receita, letreiro de ônibus ou a conversa sobre dinheiro com as pessoas do banco.

E, por contradições do mundo ainda tão preconceituoso e ainda muito avesso ao que é velho ou envelhecido, e focado sempre no futuro, que é muito incerto, adolescentes colocam-se para o mundo mostrando suas fragilidades, ficando cada vez mais doentes mentalmente, ainda que as soluções científicas não parem de trazer soluções que ainda não são capazes de manter todas as meninas e meninos saudáveis e que suas espontaneidades sejam tão bem praticadas.

E, dessa forma, aprende-se pouco e não se enaltece quem veio primeiro, quem fez o caminho surgir, a parede da casa subir, e ter a necessidade da casa comprada ou alugada estar muito próxima de uma escola.

Esquecem-se das mulheres que anularam completamente seus sonhos de crescer profissionalmente, de casar, de ter mais filhos, de concluir a obra da casa para investir tudo, e é tudo mesmo, na vida daquela pessoa mais nova.

E foi assim que esses adolescentes começaram a entender, sem definição escrita ou tão conceitual, sobre o que significa ancestralidade.

Foi aprendido da melhor forma: pela emoção, pelo registro afetivo, pela lágrima que parece definir um caminho de volta para o chão, para as suas raízes, já que era de lá que nunca deveriam ter saído completamente, que sempre deveriam estar conectadas com essa parte que os constitui.

Pedi, em um certo momento, para que prometessem que seriam melhores que pais, mães, avós e outras pessoas queridas.

Que ser melhor é uma das melhores formas de retribuir tudo que uma ancestralidade é capaz de ofertar.

E assim o fizeram. Prometeram que seriam melhores. Cada um do seu jeito, cada um no seu tempo. E, para finalizar, realizamos um dos momentos que mais me impactou: a conexão com as gerações anteriores.

Foi um exercício de terapia corporal que incluiu a conexão mente e corpo e uma vibração de todas as pessoas ali presentes, discentes, docentes e quem mais que ali convidada estivesse.

E foi lindo! Uma das alunas agradecendo a sua tataravó a batalha que ela teve para garantir o futuro da neta, representante da sua quarta geração!

E é assim que vou concluindo esse assunto, destacando o quanto a ancestralidade debatida com jovens pode ser uma das soluções para mantê-las com vitalidade no tempo presente, com mais saúde, mais propósito e vontade de fazer o melhor, para ela e para quem veio antes.