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Suspeita de violência sexual contra meninas indígenas fica sem apuração

Steve Campbell (sentado, ao centro) em foto ao lado dos Jamamadi, antes de ser expulso da terra indígena por tentar contato com povos isolados - Divulgação
Steve Campbell (sentado, ao centro) em foto ao lado dos Jamamadi, antes de ser expulso da terra indígena por tentar contato com povos isolados Imagem: Divulgação

Tatiana Merlino

Especial para O Joio e O Trigo e Repórter Brasil

12/07/2023 04h03

Pelo menos três meninas indígenas de 9 a 12 anos da etnia Jamamadi que vivem em Lábrea, no sul do Amazonas, foram diagnosticadas entre 2019 e 2021 com o vírus HPV, um indício de que podem ter sofrido violência sexual.

Os casos foram reportados para a coordenação regional da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), então sob comando do governo de Jair Bolsonaro (PL). No entanto, as suspeitas não foram investigadas, nem as crianças receberam o devido tratamento.

Servidores da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) afirmam também que há cinco anos enfrentam dificuldades para atuar nas aldeias Jamamadi. Por influência do missionário evangélico Steve Campbell, a assistência básica às comunidades estaria prejudicada na região.

O papilomavírus humano (HPV) é sexualmente transmissível e altamente contagioso. Nas mulheres, é o principal causador do câncer de colo de útero. Em crianças maiores, o contato sexual é a forma mais provável de contaminação.

No caso das três meninas jamamadis, todas apresentaram lesões dentro da boca compatíveis com infecção por HPV, segundo laudos médicos e documentos obtidos pela reportagem.

Em uma delas, havia outros sinais indicativos de violência sexual. "Foi constatada secreção transvaginal que caracteriza outra DST (doença dexualmente transmissível)", indica laudo de 2019, assinado por médico da UBS (Unidade Básica de Saúde) de Lábrea, a respeito de uma menina jamamadi de 11 anos.

O laudo faz parte de um relatório do conselho tutelar do município endereçado ao então coordenador local da Funai, Luiz Fernandes de Oliveira Neto, servidor de carreira, que comandou a sede regional entre 2014 e janeiro de 2020.

Segundo o relatório, tanto a criança de 11 anos como a irmã dela, de 9, estavam infectadas e já tinham iniciado o tratamento. O conselho sugere que o caso seja acompanhado pelo órgão em parceria com a Funai. No entanto, outro documento obtido pela reportagem aponta que os cuidados médicos foram interrompidos, pois os pais decidiram levar as irmãs de volta para a Terra Indígena Jarawara/Jamamadi/Kanamanti, onde vivem.

Procurado, Oliveira Neto afirmou que deu seguimento à denúncia dentro da Funai e que esteve na UBS para verificar a situação, acompanhado de representantes do conselho tutelar e da Sesai. Porém, diz que o caso não foi adiante em razão do que chamou de "bolsonarização da Funai" naquele momento.

O desmantelamento da Funai, somado à influência do missionário norte-americano, colocou o atendimento aos Jamamadi em segundo plano, de acordo com servidores ouvidos pela reportagem.

Falhas no atendimento

As lesões descritas pelos laudos e a idade das meninas afetadas indicam que os casos "são altamente suspeitos para violência sexual", afirma a médica pediatra Luci Pfeiffer, presidente do Departamento de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

"Tem que pesquisar a violência sexual, não existe outra possibilidade. Se a família impede [o atendimento], a lei tem que agir", diz.
Ela aponta várias falhas no atendimento às meninas jamamadis, como a falta de exames ginecológicos e laboratoriais e de atenção psicológica para investigar o histórico das crianças.

Nos casos de crianças indígenas, a lei 13.413/2017 determina que a Funai e a Sesai sejam acionadas, além do conselho tutelar e do Ministério Público Federal, para que acompanhem o processo de escuta protegida, explica Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Ao receber a denúncia, a Funai deve verificar se o conselho tutelar investigou o caso. "Na omissão do conselho, a Funai pode encaminhar a denúncia para a delegacia e fazer o boletim de ocorrência, como órgão que zela pelos direitos e garantias dos povos indígenas", diz. O servidor que não tomar tais providências "pode responder por prevaricação", por descumprir suas funções. "É preciso apurar", diz o advogado.

Militarização da Funai

O terceiro caso de HPV entre as meninas jamamadis foi identificado em 2021, quando uma adolescente de 12 anos foi diagnosticada durante consulta odontológica dentro da aldeia.

As informações sobre este caso constam de ofício da Funai, no qual a área técnica informa à coordenação regional sobre os três episódios. Este documento foi assinado um dia antes de ser nomeado um policial militar de Rondônia para coordenar a sede da Funai em Lábrea.

No governo Bolsonaro, a Funai esteve a maior parte do tempo sob chefia do delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva. Homem de confiança do ex-presidente, ele conduziu uma gestão classificada de "anti-indígena" por críticos.

No seu mandato, várias coordenações regionais foram ocupadas por militares ou policiais, sobretudo na Amazônia, o que rendeu protestos de indigenistas e entidades pela falta de experiência dos indicados para os cargos.

Na coordenação regional em Lábrea, Oliveira Neto foi substituído pelo tenente do Exército Cássio de Oliveira Pantoja, que depois deu lugar ao PM de Rondônia Manoel Arnóbio Teixeira Alves. As investigações sobre os casos não avançaram neste período, segundo apurou a reportagem com servidores da Funai.

Procurada, a Sesai disse que não foi notificada e que o distrito regional de saúde (DSEI Médio Rio Purus) não localizou qualquer denúncia. O órgão afirma seguir um protocolo para episódios como este, com ações de acolhimento e assistência.

A reportagem não conseguiu contato com Manoel Arnóbio Teixeira Alves e Cássio Oliveira Pantoja.

O conselho tutelar de Lábrea também foi procurado, mas não respondeu quais ações foram tomadas.

O governo do Amazonas, por meio da secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, informou que não foi comunicado sobre o caso das crianças jamamadis. Já a secretaria de segurança pública do estado confirmou que não houve registro de boletim de ocorrência sobre os casos.

Influência religiosa

Além da omissão dos órgãos públicos, outro motivo que dificultou o atendimento às meninas jamamadis foi o missionário religioso Steve Campbell, da igreja Greene Baptist Church, e sua influência sobre algumas lideranças da etnia, segundo os documentos obtidos por Joio e Repórter Brasil.

Campbell frequenta a região desde a década de 1960, mas foi expulso pela Funai em 2018, após liderar expedição para alcançar o povo isolado hi-merimã.

Desde então, a Funai e a Sesai têm enfrentado dificuldades para entrar no território, já que as lideranças jamamadis dizem que a assistência só poderá ser prestada após o retorno do missionário.

A reportagem esteve na casa de Campbell para solicitar uma entrevista. O missionário negou o pedido, sob a alegação de que receia que suas declarações sejam distorcidas. Disse, também, que seu advogado o orienta a não dar entrevistas.

Nota da redação de Repórter Brasil: Esta reportagem foi alterada às 19h15 de 12 de julho de 2023 para atualizar o posicionamento de Luiz Fernandes Oliveira Neto e acrescentar informações a respeito da atuação de Steve Campbell.

*Colaborou Murilo Pajolla, de Lábrea (AM). Edição de Diego Junqueira

O Joio e O Trigo e Repórter Brasil realizaram esta reportagem com apoio do Rainforest Journalism Fund (RJF) em parceria com o Pulitzer Center.

Reportagem originalmente publicada em https://reporterbrasil.org.br/