Transmissão de propósito: mulheres com HIV falam sobre relacionamentos

Como toda mãe coruja, a fluminense Jéssica Mattar, 32, e a paulistana Carla Libralino Bonfim, 35, compartilham nas suas redes a rotina diária com as crianças e também com os seus companheiros. Mas com um diferencial: elas têm HIV e falam abertamente como ficaram seus relacionamentos após o diagnóstico.

Cerca de um milhão de pessoas vivem com HIV no Brasil. Desse total, 650 mil são do sexo masculino e 350 mil do sexo feminino, segundo dados recentes divulgados pelo Ministério da Saúde.

"Marido transmitiu de propósito"

Natural da Cidade Tiradentes, na capital paulista, a locutora Carla Libralino diz que uma das coisas que mais a abalou após o diagnóstico foi não ter amamentando a terceira filha, de 10 anos.

Ela descreve ter sido isolada na maternidade para tomar remédio para secar o leite, e sentiu-se vulnerável ao ver a menina com fome sem nada poder fazer. Mas entende que aquilo foi necessário:

Hoje ela é uma menina super saudável e estou ensinando para ela sobre o vírus que a mamãe tem para conscientizá-la e a outras pessoas também.

Carla contraiu o HIV aos 22 anos, do ex-marido e pai de seus dois primeiros filhos, de 19 e 17. Mas só descobriu quando estava em outro relacionamento, faltando 15 dias para se casar.

De cara, achou que o então noivo havia lhe transmitido, já que o exame dele também deu positivo, e terminou o compromisso. Ao procurar o ex para desabafar, o choque: ele contou ter passado o vírus propositalmente. "Disse que passou porque quis e ainda me mostrou seu exame."

Carla entrou em depressão, teve síndrome do pânico e demorou a começar o tratamento. Preferia se entregar, diz, e o HIV evoluiu para a Aids. Mas conheceu seu segundo marido um ano depois. Afirma ter contado sua condição no terceiro encontro, casou-se, deu início ao tratamento e teve a menina.

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Só que esse relacionamento, Carla aponta, foi marcado por muita violência psicológica e traições, e ela só conseguiu sair dele 12 anos depois. "Por ele ter me aceitado com o vírus, achava que era amor."

Ela ainda conheceu uma outra pessoa, com HIV, e acreditou que o novo relacionamento seria envolto de mais compreensão, mas a violência se repetiu. Ali entendeu que não precisava se submeter a abusos por conta do seu diagnóstico.

Mas ela não desistiu e está casada há três anos. Ela também está indetectável e, junto ao marido, conta a rotina do casal e dá conselhos amorosos nas redes sociais.

"Antes de dar um beijo nele, contei tudo. Ele faz uso da PrEP (Profilaxia Pré-Exposição), e todo dia fala que sou uma mulher admirável."

Tratamento acaba com o risco de transmissão

No período de 2000 até junho de 2023 foram contabilizadas no país 158.429 gestantes/parturientes/puérperas infectadas pelo HIV, das quais 7.943 no ano de 2022, com uma taxa de detecção de 3,1 gestantes para mil nascidos vivos. Os dados são do Ministério da Saúde.

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Ainda segundo a pasta, o percentual de realização de pré-natal é elevado entre as gestantes/parturientes/puérperas com HIV e tem se mantido em torno de 90%.

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Imagem: iStock

No entanto, em 2022, o uso de TARV (terapia antirretroviral) durante o pré-natal foi relatado em apenas 66,8% dos casos.

O acesso hoje ao tratamento de pessoas que vivem com HIV pelo SUS é elogiado por infectologistas como o colunista de VivaBem Rico Vasconcelos. Ele lista que a facilidade vai da gratuidade ao número de comprimidos e de efeitos colaterais, "super bem tolerados".

E ensina que seguindo todos os protocolos, o paciente consegue não só manter o HIV controlado, sem progredir, como cessar o risco de transmissão via sexual.

Para grávidas e lactantes, a mesma coisa: com a terapia antirretroviral, ela é capaz não só de proteger sua saúde, mas garantir a prevenção da transmissão do HIV aos recém-nascidos.

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Apesar disso, lamenta ainda haver discriminação e julgamentos, a chamada sorofobia, levando consequentemente as pessoas a esconder que têm HIV, embora elas não sejam mesmo obrigadas a contar.

"O parceiro que não vive com HIV também conta tudo da vida dele?", questiona ele ao falar sobre o direito ao sigilo das pessoas que vivem com o vírus.

"Você acha que vai morrer"

Jéssica Mattar com o marido
Jéssica Mattar com o marido Imagem: Reprodução/Instagram/@jess.mattar

Natural de Teresópolis, região serrana do Rio, a produtora de conteúdo digital Jéssica Mattar descobriu o vírus em 2021 por acaso.

No início daquele ano, ela teve um forte sangramento e ficou um mês internada no hospital. Estava com as plaquetas baixas e anemia, mas os médicos não conseguiam descobrir do que se tratava. Até transfusão de sangue precisou fazer. Foi então que teve a iniciativa de pedir o teste HIV.

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Tinha medo de fazer porque você acha que vai morrer, e ainda perdi uma pessoa querida para a Aids. Mas faço o tratamento e levo uma vida normal.

Após o choque e acolhimento da família, Jéssica escolheu transmitir mensagens positivas nas redes sociais. Mãe solo de duas meninas de 14 e 11 anos, também decidiu não esconder o diagnóstico de quem se relacionava, até conhecer o atual marido:

"Sempre falava, durante o flerte, que vivia com HIV, e nunca sofri rejeição por isso. Avisava que tinha camisinha e estava tudo certo. Tanto que meu marido aceitou e gostou de eu ter falado abertamente."

Com o tratamento, Jéssica hoje alcançou a carga viral indetectável, quando o vírus está intransmissível. Desse relacionamento atual, teve a Maria, de 11 meses, e agora está grávida de um menino, programado para abril.

As crianças não têm o vírus, e Jéssica explica sua condição diariamente na internet. Mesmo assim diz receber mensagens preconceituosas, entre elas a de que romantiza a condição, e afirma não conseguir parcerias com algumas empresas: elas não querem atrelar a marca ao seu nome, explica. Mais um motivo, aponta, para expor sua vida.

"Decidi expor na internet porque é um tabu muito grande, e quero ajudar as pessoas. Tem gente que quer acabar com a própria vida porque acha que é uma sentença de morte, mas enquanto existe vida, vale a pena lutar por ela."

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"Não é um um vírus que destrói relacionamentos"

Nascida e criada em Goiânia, a massoterapeuta Ana Paula* é uma mulher trans de 22 anos, e descobriu o HIV há 6 meses, após aparecerem feridas pelo seu corpo. Ela acredita ter contraído durante os abusos que sofreu na adolescência. O pai também tem o vírus.

O primeiro a saber do diagnóstico foi o ex-marido, com quem viveu por um ano e separou-se recentemente. Ana Paula afirma que ele não tem o vírus, e foi bem acolhida no início. Era ele, por exemplo, quem ficava de olho no horário dos medicamentos de que precisava tomar.

Não é um um vírus que destrói relacionamentos.

Mas veio o término, e o homem então se revelou. "Ele jogou na minha cara que o traí, e por isso peguei HIV."

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Atualmente, Ana Paula está conhecendo uma pessoa pela internet, e que vive com o vírus há 10 anos.

"Acho melhor me relacionar com alguém que tenha o vírus, porque além de saber mais sobre o tema, o risco de preconceito e discriminação é menor."

"Abrir espaços de diálogo pode ser um caminho à prevenção"

Ana Bittencourt, psicóloga e voluntária na ONG Amigos da Vida, que atua em defesa das pessoas que vivem com HIV/AIDS em Brasília, ensina que todo paciente tem o direito ao sigilo, embora seja saudável, em qualquer circunstância, que as pessoas conversem sobre as suas fragilidades. "Mas sabendo dos estigmas e preconceitos, esse caminho se torna ainda mais difícil."

Exatamente por isso, ela complementa, parte desse público vive à margem da sociedade e desamparada afetivamente, em especial as mulheres, dado ao machismo e as práticas patriarcais de silenciamento enraizadas na sociedade.

E finaliza atentando para a necessidade de reconstruir o olhar sobre a pessoa que vive com HIV. "Abrir espaços de diálogo é um caminho à prevenção e também de escuta, como forma de contribuir para a qualidade de vida do indivíduo."

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