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Carro e celular são feitos para homens e prejudicam mulheres, diz autora

A pesquisadora feminista Caroline Criado Perez, autora do livro "Mulheres Invisíveis" - Rachel Louise Brown/Divulgação
A pesquisadora feminista Caroline Criado Perez, autora do livro "Mulheres Invisíveis" Imagem: Rachel Louise Brown/Divulgação

De Universa, em São Paulo

06/11/2022 04h00

Carros são feitos para homens. Assim como pianos, ar-condicionado, smartphones e esteiras de academia. E não se trata de frases de efeito aleatórias de militantes feministas, mas de fatos, todos reunidos no livro "Mulheres Invisíveis" (ed. Intrínseca), recém lançado no Brasil

Na obra, a escritora britânica Caroline Calado Perez fez uma abrangente pesquisa reunindo uma infinidade de estudos para mostrar como, na nossa vida cotidiana, os objetos mais básicos foram feitos pensando no corpo do homem. Não só no corpo, aliás, mas também no comportamento, desejos e vontades da população masculina em detrimento da feminina.

Ela mostra, por exemplo, que apesar de homens terem mais probabilidade de se envolver em um acidente de trânsito, o risco de uma mulher sair gravemente ferida ou morrer é muito maior: 47% e 17%, respectivamente. Em relação a ferimentos moderados, há 71% mais risco para ela do que para ele.

"O manequim de teste de colisão de carro mais comumente usado é baseado no corpo do homem médio, como se esse fosse o corpo do humano médio", diz a autora, em entrevista exclusiva a Universa.

"Esse manequim não só é obviamente grande demais para representar a mulher média, mas também não leva em conta outras diferenças que não têm nada a ver com tamanho, como distribuição de massa muscular ou diferenças na pelve, o que significa que essas diferenças não são contabilizadas em testes de segurança do carro, e isso resulta em carros muito mais perigosos para as mulheres", diz.

"Esse é o exemplo mais claro da minha pesquisa porque é uma ligação muito óbvia entre tratar o corpo masculino como se fosse um corpo universal neutro em termos de gênero, por um lado, e as mortes femininas, por outro."


Raiva e responsabilidade

Capa do livro "Mulheres Invisíveis", lançado em outubro pela editora Intrínseca - Divulgação - Divulgação
Capa do livro "Mulheres Invisíveis", lançado em outubro pela editora Intrínseca
Imagem: Divulgação

Na conversa, Caroline diz que, assim como a jornalista que escreve esta reportagem e leu o livro, também sentiu raiva ao se deparar com esses dados.

"Fiquei com raiva e frustrada. Também senti uma imensa responsabilidade de trazer à tona essas informações. Não acho que há uma conspiração masculina, mas sim um resultado do viés de conceber homens como padrão neutro, como sendo sinônimo de 'humano'. É um preconceito inconsciente, e não deliberado. Significa que a maioria das pessoas nem está ciente disso", afirma.

"Então, se queremos mudar as coisas, o primeiro a fazer é conscientizar as pessoas de que esse preconceito existe."


Smartphone médio não é feito para a mão feminina

No livro, Caroline cita outro exemplo bastante comum na vida da maioria das pessoas: o smartphone. Com tela média de 5,5 polegadas, o homem de tamanho médio pode usá-lo confortavelmente com uma das mãos, já a mão das mulheres, diz, é muito menor do que o celular. E estamos falando de metade da população mundial.

Algumas das respostas a esse problema que ela coletou é que há uma obsessão por telas grandes, que os aparelhos já são projetos para serem usados com as duas mãos e que mesmo mulheres têm preferido os maiores para colocá-los em suas bolsas.

Cadê o bolso que deveria estar aqui?

E aí entra outra questão: por que os celulares não cabem nos bolsos das roupas femininas? "Porque normalmente nossa roupa carece de bolsos adequados", aponta Caroline no livro.

Em comparação com a vestimenta masculina, de fato, há uma grande diferença: nos trajes das mulheres, quando há bolsos, ou são falsos ou muito curtos ou apertados, a ponto de mal caber a mão.


Aparelhos ergométricos contam calorias? de um corpo masculino

Ainda que o contador de calorias das esteiras ergométricas não levem em consideração peculiaridades corporais de nenhum usuário, para mulheres fica ainda pior.

Segundo Caroline, os cálculos para que se chegue na contagem que se vê na tela do aparelho são baseados, mais uma vez, no corpo masculino, mas especificamente no peso médio dele, 70kg.

Ainda que se altere esse número, "o cálculo continua baseado na queima de calorias de um homem de peso médio", diz a pesquisadora.

"As mulheres geralmente têm uma proporção maior de gordura e menor de músculos, assim como diferentes proporções de diversas fibras musculares", aponta, completando que, num mesmo exercício, homens queimam em média 8% a mais de calorias.

E se disserem que é mimimi?

A pesquisa de Caroline inclui outras diversas situações banais que, ressalta, apresentam uma "lacuna de dados de gênero" e se baseiam sempre no padrão masculino de corpo e comportamento.

Vão desde a atendimentos médicos inadequados e remédios que têm resultados diferentes dependendo do gênero à política e equívocos em relação a índices de pobreza.

Depois de ler 325 páginas de questionamentos a esse padrão mundial machista, pergunto a autora: o que responder a quem disser que essas reclamações são mimimi? Quase como um pedido de ajuda, já que esse tipo de comentário é bastante frequente no Brasil.

"Acho que você só tem que apresentar os fatos às pessoas, porque eles são indiscutíveis. Você não pode discutir com dados de acidentes de carro. Você não pode discutir com dados de diagnósticos médicos errados", diz.

"A maioria das pessoas sensatas não acha certo que as mulheres sejam mais propensas a morrer se sofrerem um acidente de carro. A maioria das pessoas não quer que sua mãe morra de ataque cardíaco porque o médico foi treinado para reconhecer ataques cardíacos em homens."

Resta, portanto, torcer para que a sensatez não seja, também, uma questão de gênero.