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Por que entidades LGBTQIA+ querem barrar o novo RG: 'É uma humilhação'

Apresentação do novo RG, em fevereiro deste ano: documento fere direitos de trans, dizem ativistas - Agência Brasil
Apresentação do novo RG, em fevereiro deste ano: documento fere direitos de trans, dizem ativistas Imagem: Agência Brasil

Thuanny Judes

Colaboração para Universa, em Porto Alegre

27/10/2022 04h00

Implementada de forma gradual nos estados brasileiros, a CIN (Carteira de Identidade Nacional) deve substituir o RG (Registo Nacional) em até dez anos. Criada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a iniciativa tem recebido críticas de entidades LGBTQIA+ por requisitar o preenchimento de campos como "sexo" e "nome social" que podem, segundo elas, gerar situações de "constrangimento" e "humilhações" para a população trans e travesti no país. Além disso, pontuam que não houve diálogo do governo federal com a comunidade para a formulação do novo documento.

Por esse motivo, na semana passada, a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) e a ABGLT (Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos) protocolaram uma ação civil pública contra a União na 13ª Vara Federal Cível da SJDF (Seção Judiciária do Distrito Federal) pedindo a suspensão da emissão da CIN, que já está sendo emitida no Rio Grande do Sul, Acre, Goiás, Minas Gerais, Paraná, além do Distrito Federal.

Seguindo o estabelecido em fevereiro de 2022, a CIN adota o número de inscrição no CPF (Cadastro de Pessoas Físicas) como registro geral, único e válido para todo o Brasil, diferentemente do atual RG, que é estadual. Esse mesmo decreto também determina como essencial a inclusão de nome de registro, nome social e sexo ainda na mesma face do documento.

Para as entidades, o novo formato abre "margens para violências diversas, humilhações e tratamentos degradantes devido à cultura de ódio transfóbico que vivemos no Brasil".

"É um problema porque vai acabar constrangendo quando a pessoa se apresentar com o documento e estar ali uma incongruência no sexo", pontua a presidente da Antra, Keila Simpson. O campo sexo não é um item requisitado no atual RG e os campos "nome social" e "nome de registro" aparecem em páginas diferentes.

Procuradas, a AGU (Advocacia Geral da União) e o Ministério da Economia não responderam aos questionamentos da reportagem até a publicação.

A última alteração do RG aconteceu em 2019 e permitiu a inclusão do nome social para pessoas trans e travestis. Apenas primeiros nomes ou nomes compostos são alterados, sendo mantidos os sobrenomes. O nome de registro permanece no documento, mas no verso. Para solicitar a inclusão do nome social é preciso procurar os órgãos responsáveis pela emissão, preencher um requerimento e uma autodeclaração garantindo ser transexual ou travesti.

Para a comunidade LGBTQIA+, a inclusão do nome social foi um avanço, uma vez que permitiu que pessoas trans e travestis fossem reconhecidas a partir do gênero com o qual se identificam, pelo menos socialmente. "O uso do nome social interfere diretamente nas relações desses grupos vulneráveis no meio social ao qual pertencem e está amparado pela proteção da dignidade da pessoa humana", diz trecho da ação civil pública.

A inclusão do nome social no RG não significa mudança na certidão de nascimento. Este processo, bem mais burocrático, é chamado de retificação. Para fazer as alterações no registro civil de nascimento, mesmo que sem a necessidade da presença de um advogado ou um defensor público, a pessoa deve apresentar mais de 10 documentos diferentes e se apresentar em um cartório de registro civil de pessoas naturais.

Para quem tem o nome e o sexo retificados nas certidões de nascimento, a transição do RG para a CIN não deve ser um problema. Segundo Keila, da Antra, nestes casos, as chances de constrangimento são menores, uma vez que as informações aparecerão atualizadas e sem qualquer discordância entre elas.

No Rio Grande do Sul, primeiro estado a emitir a CIN, 12 novas carteiras de identidade com nome social foram emitidas desde julho pelo órgão de identificação, o IGP-RS (Instituto Geral de Perícias do Rio Grande do Sul). Nenhuma reclamação foi registrada, complementa a entidade.

Sexo no documento

Para os autores da ação civil pública, a inclusão do campo sexo no documento nacional não tem base ou necessidade administrativa ou burocrática. Para pessoas trans que não tem o nome retificado, isso representa uma exposição que abre brechas para violências e violações de direitos.

Gustavo Coutinho, um dos advogados responsáveis pela ação contra a União, explica que há documentos importantes que não requerem este tipo de informação, como é o caso do título de eleitor, emitido pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e também do CNS (Cartão Nacional de Saúde). Para ele, são documentos que não expõem as pessoas trans, intersexo e travestis a um tratamento vexatório.

É fundamental que o Estado forneça e adote medidas para emissão de carteira de identificação que não violem os direitos de pessoas trans"
Gustavo Coutinho, advogado

"Caso haja uma decisão desfavorável [à ação civil pública] em primeira instância, o que não acreditamos, nós continuaremos, não só em segunda instância, mas também nos tribunais superiores", completa o advogado.

Segundo estudo de 2020 da Faculdade de Medicina de Botucatu da Unesp (Universidade Estadual Paulista), 1,9% da população brasileira é trans ou não-binária, o que representa 4 milhões de pessoas. Como todos os estados devem aderir à CIN até março de 2023, as entidades veem na suspensão uma oportunidade de obrigar o governo federal a dialogar com a comunidade LGBTQIA+.

"Se o decreto tivesse a possibilidade de ser debatido antes da emissão dos primeiros RGs, seria muito melhor. A gente sabe que os estados ainda são poucos. Por isso, a nossa urgência de mover essa ação, para que as pessoas possam repensar e achar mecanismos que não vão constranger", explica Keila Simpson, da Antra.

Nós temos organizações da sociedade civil no Brasil inteiro que poderiam ser chamadas para debater esse assunto, para discutir qual a melhor maneira de fazer esse documento. E não pessoas do governo, em uma sala fechada, decidirem o que vão fazer sem ouvir quem vai se constranger, quem vai ser discriminado"
Keila Simpson, presidenta da Antra