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Por medo e desinformação, brasileiras não fazem aborto legal por estupro

8.mar.2022 - Manifestantes durante Marcha das Mulheres no Rio de Janeiro - LUCAS NEVES/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO
8.mar.2022 - Manifestantes durante Marcha das Mulheres no Rio de Janeiro Imagem: LUCAS NEVES/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO

Lola Ferreira

De Universa

01/04/2022 11h57

Do estupro que povoa o imaginário comum do homem desconhecido em um beco escuro até aquele praticado pelo próprio marido, casos que resultam em gravidez garantem às vítimas o direito ao aborto em uma unidade pública de saúde. Mas apenas 64% dos brasileiros sabem disso. Os dados são da pesquisa "Percepções Sobre o Direito ao Aborto em Casos de Estupro", dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva.

Especialistas em saúde da mulher ouvidas por Universa garantem que a desinformação é a principal barreira de acesso às mulheres, mas o medo e o despreparo de profissionais da saúde e da segurança não podem ser descartados.

O caso de Sara** explica bem. Ainda menor de idade, estava em uma festa com um amigo da escola. No banheiro do evento, ele "forçou a barra" e aconteceu a penetração, contra a vontade da menina. O ato caracteriza estupro, mas Sara não sabia. Quando engravidou, ficou desesperada e começou a buscar formas inseguras de interromper a gestação. Ao ser orientada por uma profissional de saúde, descobriu que podia fazer o procedimento de forma legal e segura, sem risco de intercorrência, em um hospital público — e assim o fez.

Depois do medo e vergonha de contar a um profissional (66%), o desconhecimento sobre o direito (57%) é apontado como principal motivo pelos entrevistados para que uma mulher não interrompa a gravidez após estupro, junto ao receio de julgamento por família ou amigos. A pesquisa foi divulgada no último dia 25, após ouvir 2.000 pessoas, entre homens e mulheres com 16 anos ou mais, em todas as regiões do Brasil. As entrevistas foram feitas entre os dias 27 de janeiro e 4 de fevereiro deste ano. A margem de erro é de 2.2 pontos percentuais.

Números denunciam falta de acesso

"Os números de estupro e aborto legal mostram que muitas mulheres não têm acesso ao procedimento", explica a obstetra e ginecologista Ana Teresa Derraik.

Segundo dados públicos do Ministério da Saúde, o Brasil realiza, em média, 1.750 abortos por razões médicas e legais por ano, considerando os últimos 10 anos completos. O ano com maior número de procedimentos deste período foi 2020, com 2.071 abortos realizados. A menor soma foi em 2013, com 1.489.

14.ago.2015 - Mulheres se reúnem em marcha por direito da mulher sobre o seu corpo, liberação do aborto e outras questões - Eduardo Valente/Frame/Estadão Conteúdo - Eduardo Valente/Frame/Estadão Conteúdo
14.ago.2015 - Mulheres se reúnem em marcha por direito da mulher sobre o seu corpo, liberação do aborto e outras questões
Imagem: Eduardo Valente/Frame/Estadão Conteúdo

No mesmo período, o Brasil registrou, em média, 20.500 estupros por ano nos sistemas de saúde. Quando as vítimas são meninas com 14 anos ou menos, o número é de 2.800 casos por ano em média. A legislação brasileira prevê que também é estupro de vulnerável qualquer relação sexual com meninas de até 14 anos, independentemente das circunstâncias.

"Há quem escolha prosseguir com a gestação fruto de estupro, mas sabemos que muitas não sabem ou não acessam esse direito."

Como ampliar o acesso à informação?

Ana Teresa Derraik trabalhou por oito anos como diretora do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro. Ela atende consultas particulares e é diretora técnica do Nosso Instituto, ONG dedicada aos direitos sexuais e reprodutivos.

Com quase 30 anos de experiência no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual e em busca de informações, ela acredita que o trabalho "é de formiguinha para que mulheres não continuem protagonizando histórias de gestação indesejada ou morte, quando há soluções já previstas em lei".

Além da propagação em grupos de amigas, família e educação sexual, a médica destaca a importância do debate na política institucional.

Eu carrego comigo a dor de ter presenciado a morte de uma menina de 13 anos após tentar um aborto de forma inadequada. Ela não sabia que o mesmo hospital em que ela morreu garantia a ela um aborto seguro e legal. Ana Teresa Derraik, diretora técnica do Nosso Instituto

"É importante cobrar posição e entender que ficar 'em cima do muro' não é bom. Um político ou candidato que não se posiciona sobre o tema não é confiável", avalia.

Em casos que a mulher engravida após um estupro, o aborto legal é garantido sem a necessidade de um boletim de ocorrência, mas mais das metade (54%) dos brasileiros não sabem disso, de acordo com a pesquisa do Patrícia Galvão com o Locomotiva.

"Ação principal é orientação", diz obstetra

8.mar.2022 - Manifestante protesta a favor do aborto durante a marcha do Dia Internacional das Mulheres em Porto Alegre - EVANDRO LEAL/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO - EVANDRO LEAL/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO
8.mar.2022 - Manifestante protesta a favor do aborto durante a marcha do Dia Internacional das Mulheres em Porto Alegre
Imagem: EVANDRO LEAL/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO

Ângela Ruschel, psicóloga, mestre em Saúde Coletiva e membro do Fórum Aborto Legal do Rio Grande do Sul, avalia que o medo das instituições ainda é grande entre as vítimas de estupro e mulheres em busca de aborto legal. Para ela, o caminho para mudar o cenário é orientar os profissionais de saúde e segurança para que elas saibam conduzir corretamente as mulheres aos serviços garantidos por lei.

"Estupro é um crime e precisa ser investigado. A política principal tem de ser orientar que existe a possibilidade [de registrar na polícia], mas a decisão é da mulher", afirma.

Na avaliação de Ruschel, existe uma desorganização na rede de atendimento à mulher vítima. A solução, na avaliação da profissional, é investimento em capacitação dos profissionais que prestam atendimento a esse público. "A polícia precisa saber encaminhá-la ao serviço de saúde", diz.

O que é estupro e como agir em caso de gestação após o crime?

A lei entende que qualquer interação sexual que não tenha consentimento de ambas as partes é considerada estupro, independentemente de quem é o agressor, o local ou se houve consentimento anterior à negativa.

Em casos de estupro, a mulher pode ter acesso à profilaxia — para evitar infecções sexualmente transmissíveis e gravidez — em hospitais públicos com serviço de obstetrícia e ginecologia sem fazer registro na polícia. O hospital não pode negar atendimento, que preferencialmente deve ser feito em até 72 horas.

No caso de uma gestação decorrente de estupro, a mulher pode procurar uma unidade de saúde nos mesmos moldes e relatar o acontecido. No Hospital da Mulher Heloneida Studart, Derraik explica, a mulher tinha um atendimento preservado em que contava o episódio que caracterizava o estupro.

Quando é internada para realizar o procedimento, o método de preferência é o medicamentoso, com suporte da curetagem ou método similar, caso seja necessário. Nos oito anos em que esteve no hospital, Derraik afirma não se lembrar de nenhuma intercorrência grave no procedimento. "Pelo contrário, vi inúmeros casos de mulheres morrerem por tentarem abortar de forma insegura, mesmo tendo o direito garantido.

*Esta reportagem foi realizada em parceria com o Instituto Patrícia Galvão
** O nome da personagem foi trocada por motivos de segurança