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"Ideia de matar pela honra ainda está aí", dizem autoras de Praia dos Ossos

Ângela Diniz é a protagonista da série; ela foi assassinada por Doca Street em 1976 na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ) - Acervo UH/Folhapress
Ângela Diniz é a protagonista da série; ela foi assassinada por Doca Street em 1976 na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ) Imagem: Acervo UH/Folhapress

Mariana Gonzalez

De Universa

31/10/2020 04h00

Uma mulher morre assassinada a cada sete horas no Brasil, fazendo com que elas sejam contadas às centenas todos os anos. Mas a história de uma delas, morta com quatro tiros disparados pelo companheiro há 44 anos, muito antes que o termo feminicídio constasse de uma lei, virou podcast e foi seguido como novela das nove em tocadores como Deezer e Spotify.

A vítima é Ângela Diniz e o algoz, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca, figurinhas carimbadas das colunas sociais dos anos 1970.

"Praia dos Ossos", uma produção da Rádio Novelo, levou dois anos e ao menos 40 profissionais para ser costurada e poder contar, ao longo de oito episódios — o último vai ao ar hoje, logo cedo — diversos desdobramentos do caso: a vida que era imposta às mulheres da sociedade naqueles tempos; a defesa machista do célebre advogado Evandro Lins e Silva, que se refere a Ângela nos tribunais como "prostituta" e "Vênus lasciva", dada a "amores anormais [se referindo a relações homoafetivas]; e a movimentação feminista que, na sequência do caso, levantou campanhas de combate ao feminicídio e deu origem às Delegacias da Mulher que conhecemos hoje.

A Rádio Novelo não divulga dados de público, mas disse a Universa que Praia dos Ossos é a melhor estreia da empresa, que foi criada no ano passado e produz outros 14 podcasts.

Branca Vianna, que idealizou o podcast e faz a narração dos episódios, e Flora Thompson-Devaux, pesquisadora, falaram juntas a Universa sobre Praia dos Ossos e garantem aos ouvintes: não pretendem produzir um "Praia dos Ossos 2" ou outra série que envolva um crime de feminicídio.

"Não vai ter uma série sobre Aída Curi, nem sobre Elisa Samudio [ambas vítimas de feminicídio, em 1958 e em 2010]. Primeiro porque nossa psique não aguenta. Segundo porque seria como contar a mesma história. Cada mulher, cada vítima tem sua individualidade, é claro, mas nós traçamos em Praia dos Ossos fatores sistêmicos que estão por trás do feminicídio no Brasil. Seria redundante", explica Flora.

Flora Thompson-Devaux consulta revistas antigas durante pesquisas para a produção de Praia dos Ossos - Cortesia/Paula Scarpin - Cortesia/Paula Scarpin
Flora Thompson-Devaux consulta revistas antigas durante pesquisas para a produção de Praia dos Ossos
Imagem: Cortesia/Paula Scarpin

UNIVERSA: Por que vocês escolheram o caso da Ângela entre outros tantos assassinatos de mulheres ao longo das décadas? O que essa história tem de especial para merecer essa produção?

Branca Vianna: Foram vários elementos, um deles é a defesa icônica do Evandro Lins e Silva [advogado do primeiro julgamento de Doca Street, em 1979], que foi machista e baseada em transformar a vítima em ré e o réu em vítima. A história da Ângela que foi contada no tribunal é outra, completamente diferente, e esse é um elemento muito importante e simbólico. Depois, pela questão dos movimentos feministas que surgiram, porque não é todo caso que mobiliza desta forma. Feminicídios são muitos no Brasil, então um caso tem que ter consequências maiores para que mereça ser contado. E o terceiro elemento é a própria Ângela, que é uma mulher muito interessante, cheia de contradições que ajudam a contar uma boa história.

E o que essa história diz sobre a forma como a Justiça trata as mulheres no Brasil?

Branca: eu acho que a gente teve grandes avanços de 1979 [data do primeiro julgamento do caso] para cá em termos legislativos: a Lei Maria da Penha [2006], a Lei de Feminicídio [2016], legislação para crimes sexuais. Por outro lado, estou lendo agora o livro da jornalista Ana Paula Araújo sobre abuso sexual ["Abuso: A cultura do estupro no Brasil", lançado este ano pela Globo Livros], e é muito impressionante como pouca coisa mudou. A gente tem um sistema judiciário profundamente machista, que culpa vítimas por crimes terríveis, como assassinatos e estupros coletivos.

Há um longo caminho pela frente, e isso não depende só de lei, mas da mudança na mentalidade das pessoas numa sociedade tão patriarcal, e de avançar com a ideia de que mulher também é gente.

Flora Thompson-Devaux: A legítima defesa da honra é quase um fantasma na Justiça. Ora aparece de maneira mais implícita, ora mais explícita, mas o fio condutor que a gente traçou por séculos, essa ideia de que é ok matar mulher, ainda está aí. Vai adquirindo novas roupagens, mas está aí. Mudanças legislativas e jurídicas são importantes, mas não vão adiantar sozinhas.

Ângela Diniz - Arquivo UH/Folhapress - Arquivo UH/Folhapress
Imagem: Arquivo UH/Folhapress

Angela Diniz - Acervo UH/Folhapress - Acervo UH/Folhapress
Imagem: Acervo UH/Folhapress

No primeiro episódio, vocês contam que encontraram nas pesquisas um manifesto assinado mulheres em protesto à pena branda que a Justiça imputou a Doca, e que seu nome, Branca, consta entre as assinaturas, ao lado do nome de sua mãe e sua irmã. Mas você decidiu contar a história sem se lembrar dessa ligação. Dá para chamar de coincidência? Como a história da Ângela chegou até vocês?

Branca: Coincidência nenhuma. A minha mãe é uma feminista de longa data, e já militava há anos quando o Doca foi a julgamento pela primeira vez. Esse era um tema que fazia parte da minha vida. Eu não me lembro de assinar aquilo [no podcast, Branca levanta a hipótese de que a mãe tenha assinado por ela, que na época tinha 17 anos], mas me lembro do assassinato, do julgamento e de ter ficado muito chocada com a forma como a história se desenrolou. Ter assinado aquele manifesto lá atrás e me interessar pelo caso hoje em dia não tem nada de coincidência, é uma linha de causa e consequência.

Flora: Eu ouvi falar do caso pela primeira vez quando via Branca, em 2018. Eu vim para o Brasil em 2011 [Flora é norte-americana, cresceu em Charlottesville, na Virginia], quando o caso já não estava mais tão presente na memória coletiva brasileira.

O que foi mais desafiador no processo de pesquisa e apuração? E o que mais surpreendeu vocês?

Flora: Eu ataquei essa apuração de uma forma muito bruta. Uma das primeiras coisas que eu fiz foi entrar na Hemeroteca Nacional e buscar todas as ocorrências em nome da Ângela — são quase mil, só nas que foram digitalizadas. Eu li a história do começo ao fim, contada por diferentes publicações, Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil, O Globo, das primeiras citações à Ângela até as últimas. E tudo foi uma surpresa.

A Pantera de Minas [como Ângela era conhecida nas colunas sociais] era um personagem nas colunas sociais, e fazer um recorte biográfico dela, conhecer quem era essa mulher que foi tão desumanizada, foi desafiador e muito fascinante. Os detalhes que a gente foi garimpando mostram uma pessoa muito interessante, que a gente não termina de entender.

Um dos maiores sustos foi a questão da legítima defesa da honra, que o Evandro [Lins e Silva] teria inventado para acusar a Ângela, mas existe desde as Ordenações Filipinas [assinada em 1595], onde está lícito que um homem pode matar uma mulher sob suspeita de traição. Se a gente coloca o Evandro como vilão, ou o Doca como vilão, a gente perde a noção que esses são conceitos estruturais, muito maiores que o caso Ângela. Por isso "Praia dos Ossos" não tem 50 episódios.

Os autos do processo são muito volumosos, levantamos material suficiente para 50 episódios, mas a história vai muito além desta trajetória individual. Não queríamos passar a impressão de que o feminicídio da Ângela é o único que importa.

Vocês cruzaram uma jornada de dois anos de pesquisas e falaram com dezenas de pessoas envolvidas. Qual foi a entrevista mais impactante para o podcast?

Branca: A que mais me impactou foi uma entrevista que não foi ao ar, e por isso eu não posso te falar muito. Mas ali eu percebi como é delicado tratar esse tipo de assunto, o imenso cuidado que a gente tem que ter com as pessoas que estamos entrevistando. Não são pessoas públicas, são pessoas privadas, que estão te dando acesso a elas, te recebendo na casa delas, dizendo coisas que são muito traumáticas, independentemente do lugar que elas ocupam na história.

Nós entrevistamos muita gente que nunca havia dado entrevista, gente mais velha, que não sabe o impacto que aquilo vai ter quando for publicado. Uma entrevista pode ter uma repercussão muito grande e que pode ser muito negativa para aquela pessoa, sua família, vida profissional e equilíbrio mental. Nessa entrevista específica, eu saí pensando 'que risco nós somos para essas pessoas', e passei meses pensando nisso.

Branca Vianna Praia dos Ossos - Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal - Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal
Imagem: Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal

Branca Vianna Praia dos Ossos - Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal - Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal
Imagem: Flora Thompson-Devaux/Arquivo pessoal

O que vocês sentiram diante do Doca [ele é entrevistado pela dupla no sexto episódio]? Quais sensações surgiram diante do homem que matou Ângela Diniz?

Branca: Essa foi uma entrevista impactante de outra maneira. Ele estava lá, ninguém obrigou ele a dar entrevista, mas o tempo todo ele estava relutante [Doca topou conceder a entrevista por intermédio de seu melhor amigo, mas Branca narra que ele passou horas de óculos escuros, sentado no braço da poltrona e de frente para a porta, pronto para ir embora]. Eu não fico nervosa quando vou entrevistar uma pessoa, mas essa foi a entrevista que mais me deixou nervosa na vida. Havia um medo de perder aquela oportunidade, de não conseguir perguntar tudo o que a gente queria, de não ouvir dele respostas que só ele poderia dar. Demorou para que eu me convencesse que ele não ia levantar e ir embora.

Flora: Eu estava nervosa também. Mas àquela altura, a gente tinha feito tanta entrevista, tanta pesquisa, que foi possível uma abordagem um pouco mais calma, mais equilibrada. Nós sempre sentimos que daria perfeitamente para fazer o podcast sem a presença do Doca, mas queríamos ouvi-lo.

Branca: A gente não quis ouvi-lo porque achava que tinha que ouvir o outro lado. Algumas questões não têm outro lado. O que a gente queria era entender por que aquilo aconteceu, como aconteceu, como chegou àquele ponto. Havia uma curiosidade enorme de saber como ele é. Eu me interesso muito por pessoas e nós passamos meses estudando aquilo, tinha interesse em saber a cara dele, os gestos que ele faz, como é o trato com as outras pessoas, ainda mais porque [Doca e Jorge, melhor amigo dele, presente na entrevista] são pessoas que não são parte do nosso mundo, vieram de uma geração diferente, de um mundo que não existe mais.

Branca, na entrevista com o Doca, duas frases se destacam. Quando ele afirma que acabou com a vida dela e com a dele também, você responde "Com a dela certamente"; e, no final, você se despede dele dizendo "muito prazer". Por quê?

Branca: Eu não lembrava de ter dito a primeira. Quando eu ouvi já no ar, percebi que aquele é um momento em que eu estou já mais à vontade, podendo falar coisas sabendo que não vou assustá-lo. Na hora que o Doca falou aquilo [que, ao atirar em Ângela, teria acabado com duas vidas: a dela e a dele], ele estava ali na minha frente: eu via um senhor de 84 anos, que foi preso, foi solto, se casou com uma mulher que ele ama.

Ele levou uma vida feliz, fez coisas normais, e claramente não acabou com a própria vida. Enquanto isso, a Ângela tem netos e bisnetos que nunca vai conhecer.

Essa narrativa, de que ele acabou também com a vida dele quando matou a Ângela, foi criada pelo Evandro Lins e Silva. Ele era um dos advogados mais famosos do Brasil e dava entrevistas dizendo que Doca era um homem destruído, que nunca mais ia se recuperar, e o Doca incorpora até hoje erra versão, que não é verdadeira.

O "muito prazer" é a coisa mais normal de se dizer quando você vai se despedir de alguém. Deixamos essa fala ir ao ar de propósito. Teve gente que escreveu para a Novelo dizendo que eu não poderia ter aquilo ou rido em alguns momentos, mas queríamos que ficasse claro que aquela não era uma entrevista antagônica. A gente não queria fingir para o público uma coisa diferente do que aconteceu. Eu não sou uma pessoa que briga, que não diz "por favor" e "obrigada", sou assim com todo mundo, principalmente com quem está disposto a me dar uma entrevista.

Flora: E nem por isso as pessoas devem entender que o Doca nos ganhou, ou que a versão dele dos fatos nos convenceu. A gente não deixou de fazer todas as perguntas. É importante não esquecer que aquela era uma conversa entre seres humanos, não tinha um monstro ali na sala.

Doca Street, durante seu primeiro julgamento, em 1979; ele foi condenado a dois anos, com direito a sursis - Folhapress/Folhapress - Folhapress/Folhapress
Doca Street, durante seu primeiro julgamento, em 1979; ele foi condenado a dois anos, com direito a sursis (suspensão de pena)
Imagem: Folhapress/Folhapress

E se vocês pudessem mudar o resultado dessa história, como seria?

Branca: Mais importante do que [mudar] a pena que o Doca recebeu, no primeiro ou no segundo julgamento, eu mudaria a defesa que foi feita dele. Aquilo é muito chocante, e destruiu a família dela. Um assassinato tem consequências muito além do que o próprio assassinato, mas a defesa foi de uma imensa irresponsabilidade com as pessoas ligadas à Ângela. Ela foi achincalhada simplesmente por ser mulher, foi chamada de coisas que são terríveis hoje em dia -- imagina nos anos 1970, quando tudo era ainda mais conservador. Eu mudaria isso, o que foi dito dela pela defesa, depois pela imprensa.

Flora: Eu me afeiçoei muito à Ângela. E, ouvindo o depoimento da Ângela Teixeira [amiga de Ângela Diniz, que estava em Búzios no dia do assassinato], quando ela diz que as coisas poderiam ter sido diferentes, que elas poderiam ter ido juntas à manicure no dia seguinte, me dá uma vontade enorme de que o Doca não tivesse voltado para casa e que o assassinato não tivesse ocorrido.

Se não fosse a Ângela, seria outra mulher. Naquele mesmo dia, outras mulheres foram assassinadas, no dia seguinte e até hoje. Nas condições de temperatura e pressão da sociedade brasileira, não poderia ter sido de outra forma.

Depois desta trajetória de oito episódios, que legado vocês gostariam que Praia dos Ossos deixasse para o Brasil de hoje?

Branca: Eu tenho dois desejos muito ambiciosos. Que a defesa do Doca não seja mais ensinada a estudantes de Direito como uma grande defesa, ou que pelo menos seja ensinada com o contexto necessário, falando de machismo, de slut-shaming [estigmatização].

Que as pessoas do Direito sintam vergonha de usar a defesa do Evandro Lins e Silva nas faculdades de Direito como um bom exemplo de defesa para um homem que matou uma mulher. Claro que um advogado tem a obrigação de defender seu cliente, mas não a qualquer custo.

E que as pessoas passem a ter vergonha de dizer "eu não sou feminista". A gente ouve muito essa frase, "eu não sou feminista mas" ou "eu não sou feminista, sou feminina".

Flora: Eu vi a raiva que o podcast despertou nos seis primeiros episódios, e espero que o sétimo [que foi ao ar no dia seguinte à entrevista] e o oitavo [que vai ao ar hoje] tragam um pouco de esperança, mostrem o caminho para além de postar seu ódio nas redes sociais. Meu desejo é inspirar mulheres a agirem, e não só fazer passeata, mas pressionar instituições legislativas, jurídicas. A gente conta no episódio 7 alguns dos desdobramentos do caso, como a criação do SOS Mulher, que deu origem às Delegacias da Mulher que existem hoje. Meu desejo é que a gente possa agora pegar essa energia toda e construir alguma coisa.