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Mulheres negras querem trocar Legislativo por visibilidade do Executivo

Marcos Oliveira/Agência Senado
Imagem: Marcos Oliveira/Agência Senado

Nataly Simões

Da Alma Preta, em colaboração com Universa

24/09/2020 04h00

Embora as mulheres negras sejam 55,6 milhões de pessoas no Brasil, elas continuam pouco representadas nos cargos do Executivo. Nas últimas eleições municipais, em 2016, das 5.500 prefeituras pelo país, foram eleitas 649 mulheres. Somente 28,3% desse total se autodeclararou negra - ou, em números absolutos, foram 10 pretas e 174 pardas.

Nas eleições municipais deste ano, parte das mulheres negras eleitas para o Legislativo em 2018 tentará migrar para os cargos executivos pelo país, a fim de ocupar postos mais próximos da população, com mais visibilidade, e com maior representação política - movimento comum entre os políticos brancos, que ocupam maioria absoluta desses cargos.

É o caso da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), candidata à prefeita de Belo Horizonte; da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), candidata ao lado da deputada estadual Renata Souza à Prefeitura do Rio de Janeiro; e a deputada estadual da Bahia, Olívia Santana (PCdoB), pré-candidata à prefeita de Salvador.

Para o professor Cristiano Rodrigues, do departamento de Ciência Política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a tentativa de migração dessas mulheres negras do cenário Legislativo para o Executivo é motivada por dois fatores principais: a divisão proporcional de recursos para candidatas mulheres, aprovada em 2017 pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), e a pressão pela ampliação da representação política de mulheres negras - levantada especialmente pelos movimentos sociais e negros.

"São fatores independentes e que podem se conectar em algum momento. Com a alteração na legislação sobre a divisão proporcional de recursos para candidatas mulheres, os partidos tiveram que caminhar para construir candidaturas mais competitivas. Além disso, desde 2016 há uma pressão maior pela representação política de mulheres negras, quando ocorreram as primeiras candidaturas coletivas e que tinham como cabeça de chapa mulheres negras", explica.

Rodrigues acrescenta que o assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em março de 2018 no Rio de Janeiro, também levou ao aumento das discussões sobre representação política de mulheres negras. "Nós temos uma geração de herdeiras de Marielle Franco e o debate público sobre a sub-representação das mulheres negras ganhou ainda mais corpo nos últimos anos", complementa o professor.

A chegada de Jair Bolsonaro (sem partido) à Presidência também explica o desejo de deputadas federais negras em buscar o posto de prefeitas em suas bases eleitorais. Para Nathalia Carneiro, mestre e doutoranda em ciência política pela USP, com a eleição de Bolsonaro, a política de representação "entrou em cheque".

"É preciso retirar os corpos que estão sempre acostumados a estarem lá [nas prefeituras]. Eu vejo que essas mulheres são uma resposta a Bolsonaro e à onda fascista que emerge no país. Essas figuras femininas e negras têm potencial para mudar o cenário da política institucional", avalia.

A deputada federal e candidata à Prefeitura de Belo Horizonte, Áurea Carolina, diz que sua candidatura é fruto de um movimento de continuidade da "luta coletiva", que a levou ao posto de vereadora da cidade e deputada federal por Minas.

"É um processo coletivo em que as lutas populares são uma ponte de partida e a grande referência para a nossa atuação política. É deste conhecimento e destas práticas coletivas que nós chegamos para propor uma outra forma de governar, com uma agenda política que coloca a vida de todas as pessoas no centro", afirma a candidata.

Representação em cheque na capital mais negra do país

Em Salvador, 80% da população se autodeclara preta ou parda, o que dá ao município o título de cidade mais negra do Brasil. A cor da população soteropolitana, no entanto, não se reflete na representação política do governo municipal. Em 471 anos de história, a primeira capital do Brasil nunca foi governada por uma pessoa negra escolhida pelo voto popular.

O único prefeito negro a governar Salvador foi Edivaldo Brito, por 10 meses, entre 1978 e 1979, nomeado pela ditadura militar. No pleito de 2020, a cidade poderá ter pela primeira vez uma mulher negra eleita. As candidatas na corrida eleitoral são Denice Santiago, do PT, e Olívia Santana, do PCdoB.

Olívia foi vereadora da cidade por 10 anos e a primeira mulher negra eleita deputada estadual da Bahia, em 2018. Para ela, o cenário mostra que Salvador terá uma eleição inédita e histórica. "É um avanço o que está acontecendo em Salvador. Fui candidata consagrada na conferência do meu partido. Isso por si só é uma conquista da trajetória dos meus mandatos como vereadora e como deputada do estado, o que redefine o jogo político agora", considera.

A Major Denice, ex-comandante da Ronda Maria da Penha na Bahia, disse em sua rede social que a convenção do partido que a reconheceu candidata foi marcante. "Esse com certeza foi um dos dias mais emocionantes da minha vida. Vamos juntos fazer de Salvador uma cidade mais justa, humana e igualitária."

Fundo eleitoral proporcional para negros

Um passo considerado importante por especialistas para o combate à sub-representação política das mulheres e homens negros é a decisão do TSE de estabelecer recursos proporcionais ao percentual de candidaturas negras.

A medida aprovada em 25 de agosto, após uma consulta apresentada pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), determinava que a nova regra passasse a valer apenas em 2022.

O professor Cristiano Rodrigues avalia que a decisão deve ter um "efeito positivo no aumento de candidaturas negras para prefeituras.

Os partidos têm até o próximo sábado para formalizar as candidaturas no TSE. Na maior cidade do país, São Paulo, há apenas uma mulher negra na disputa pelo comando da cidade. Vera Lúcia (PSTU), que em 2018 foi candidata a presidente da República pela mesma legenda, nunca ocupou o posto de vereadora ou deputada. Autodenominada como socialista, ela destaca que as mulheres negras são diferentes uma das outras.

"Eu considero muito importante dar visibilidade às mulheres pretas, para mostrar que podemos ser diferentes e não aceitar aquilo que nos reserva o capitalismo: a servidão e a submissão. Mas eu também tenho consciência de quem nem todas as mulheres negras são iguais. Nós temos as inúmeras 'marias' que vivem nas periferias e temos Michelle Obama e Condoleeza Rice, que, apesar de sofrerem com o racismo e o machismo, não vivem dramas das mulheres pobres, negras e trabalhadoras", afirma.

O que acontece se as deputadas se elegerem como prefeitas?

As candidatas a prefeitas não precisam abdicar dos cargos legislativos das esferas estadual ou federal para concorrer aos cargos do executivo municipal. Caso elas não sejam eleitas, elas retornam ao trabalho como deputadas ou, se eleitas, dão lugar aos suplentes.

No caso de eleitas as deputadas federais Áurea Carolina e Benedita da Silva, por exemplo, assumem seus cargos na Câmara Federal respectivamente os suplentes Jorgetânia Ferreira e Wadih Damous, ambos brancos.

Rodrigues explica, no entanto, que em razão de a Câmara dos Deputados já ser um espaço majoritariamente branco, a possível saída de deputadas negras de seus postos não deve "embranquecer" a Casa legislativa. Na Câmara Federal, 75% dos 513 deputados eleitos em 2018 são brancos.

"O número de deputadas negras é relativamente baixo, então a possibilidade de ausência delas não pode embranquecer um espaço que já é embranquecido por si só. A questão principal sobre essas candidaturas negras é a relação que elas podem construir nos municípios, com efeitos políticos mais importantes do que nos cargos do Legislativo nacional", analisa o professor.