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Elas lutam por laqueadura: "Médico falou em 'sinal de Deus' pra não operar"

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Imagem: iStock

Camila Brandalise

De Universa

23/09/2020 04h00

O tema do aborto domina as discussões sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Compreensível, já que o debate envolve diferentes pontos de vista e crenças e costuma estar relacionado a notícias incômodas e delicadas, como a da garota de 10 anos que era estuprada pelo tio e que teve seu direito ao aborto atendido em agosto desse ano.

Mas nessa seara há outros direitos que também têm impacto direto sobre a vida das mulheres, entre eles o de realizar uma esterilização voluntária. Apesar de a laqueadura ser garantida por lei — a única exigência é que a pessoa tenha mais de 25 anos ou dois filhos —, relatos de resistência por parte de médicos e de outros profissionais de saúde são recorrentes nos casos de pacientes que não são mães.

"As motivações das negativas médicas variam bastante. Uns dizem que é pelo medo do arrependimento ocasionar um processo judicial, ainda que a lei não criminalize o médico caso a paciente se arrependa. Outros falam que não fazem por convicções religiosas ou morais", afirma a advogada Patrícia Marxs, ativista pelos direitos sexuais e reprodutivos e criadora do projeto Laqueadura Sem Filhos, Sim, pelo qual orienta mulheres a realizarem o procedimento.

"Apesar de tantas fundamentações para a recusa, vejo que todas giram em torno do desconhecimento da legislação, bem como do machismo que infelizmente ainda está enraizado e que leva a se pensar que a mulher precisa cumprir a função social da maternidade, que deve ser mãe por ter nascido com útero."

Há propostas de revisão de lei em diferentes instâncias, incluindo um projeto de lei no Senado, outro na Câmara dos Deputados e uma ação no STF (Superior Tribunal Federal). No dia 31 de agosto, o procurador-geral da República, Augusto Aras, encaminhou um posicionamento ao STF sugerindo que a único requisito seja ter mais de 18 anos. Com essa idade, aponta, já é possível adotar um filho, por que não, portanto, autorizar a esterilização voluntária?

Universa conversou com três mulheres que têm insistido para que seu desejo de realizar uma laqueadura seja respeitado, mesmo enfrentando resistências ligadas a crenças religiosas, negligência por parte dos serviços de saúde e desconhecimento da legislação. Leia, abaixo, suas histórias.


"Médico topou, mas depois disse que Deus deu um sinal para não me operar"

"Não quero ter filhos porque passei minha vida cuidado da minha irmã menor. Quando eu tinha 14 anos, e ela, dez meses, meus pais se separaram. Ficamos sob a guarda do meu pai, que exigia que eu cuidasse dela. 'Você é a mãe dela', me dizia.

Fiz 25 anos em agosto de 2020 e, um mês antes, em julho, comecei a pesquisar por médicos que fazem a laqueadura na minha cidade, Fortaleza. Encontrei cerca de dez, liguei para todos, que diziam não fazer a operação no meu caso, só quando a pessoa tivesse mais de 30 ou já tivesse filhos.

Também marquei uma consulta com um médico que já havia me atendido em outra situação. Contei minha história, e ele me explicou que a reversibilidade é complicada, mas que se eu quisesse operar, de acordo com a lei, poderia. E ele faria a operação. Eu ainda tinha 24 e combinamos que deixaria tudo pronto para quando completasse a idade exigida.

Fiz os exames que ele tinha pedido. O de Covid-19 deu positivo, e ele me pediu que esperasse 21 dias. Consegui a guia do plano de saúde, já estava com a internação marcada. Quando completei a quarentena pedida por ele, consultei de novo para remarcarmos a cirurgia.

Foi quando ele falou que estava esperando um parecer do Conselho Estadual de Medicina. Questionei sobre esse parecer, já que ele não havia falado nada sobre isso antes. Ele respondeu que o exame positivo para Covid-19 foi um sinal de Deus dizendo para ele não me operar porque era cristão. Fui ao Conselho e me disseram que não é necessário ter esse parecer, mas o médico disse que só fará a operação depois que tiver um posicionamento da entidade.

Me senti péssima, negligenciada, sem ter meus direitos respeitados. Tudo bem ele não querer fazer a cirurgia. Mas porque não falou antes? Já estava com tudo pronto, com a guia para internação em mãos. Agora estou aguardando um posicionamento do Conselho e, enquanto isso, também procurando outro médico."


Antonia Oliveira, 25, estudante universitária


"Assistente social me perguntou se sofri abuso na infância por não querer ter filhos"

tassiane laqueadura - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Tassiane Quadros: peregrinação por consultórios e serviços psicossociais para conseguir realizar procedimento
Imagem: Arquivo pessoal

Não tenho vontade de ser mãe e os métodos contraceptivos são ruins para mim, sofro com efeitos colaterais. Com a pílula, por exemplo, fiz várias tentativas com diferentes marcas por dois anos. Tinha náuseas, inchaço, espinhas.

Descobri pesquisando na internet que poderia fazer a laqueadura. Na UBS (unidade básica da saúde), a médica disse que não poderia fazer pois eu não tinha filhos. Falei da lei que só exigia ter 25 anos, e eu tenho 29. Ela fez o encaminhamento para avaliação psicossocial. A assistente social falou que eu iria me arrepender e passou para a psicóloga, que fez uma avaliação positiva para que se realizasse a operação.

Na consulta com o médico que faria a cirurgia, de novo ouvi que não poderia fazer porque não tenho filhos, e mais uma vez falei da lei. Ele pediu que eu passasse, mais uma vez, por uma assistente social, dessa vez do próprio hospital.

Ela perguntou mil coisas sobre eu não querer ser mãe, se sofri algum abuso na infância e outras questões invasivas. Falou que poderia vir a me arrepender, que essa cirurgia não tem reversão, que poderia casar e meu marido querer filhos. Expus meus argumentos, disse que quem casar comigo vai saber que não quero filhos. Mas estava inconformada em ter que passar por tudo isso. Depois de um tempo, me entregaram um documento dizendo que eu estava apta para fazer a cirurgia.

A operação estava marcada para junho deste ano. Na noite anterior, o médico me ligou e desmarcou. Pediu que eu ligasse para as secretárias, elas explicariam o motivo e remarcariam. Mas nem elas sabiam o porquê. Agora estou esperando liberar leitos no hospital parar marcar uma nova data.


Tassiane Quadros da Silva, 29, estudante de curso técnico em Nutrição


"Já ouvi não de 60 pessoas diferentes em três anos de tentativas"

flavia laqueadura - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
"Perguntam quem vai cuidar de mim na velhice", diz Maria Flávia Cardoso
Imagem: Arquivo pessoal

Tento fazer a cirurgia há três anos. Passei por consultas com médicos, conversei com enfermeiras e com assistentes sociais. Ao todo, devo ter falado com umas 60 pessoas. Todas me disseram não.

Sem falar nas tias, avós, madrinha, professores, colegas de trabalho, amigos e até desconhecidos que me encontravam nas filas para marcar exames. Todo mundo quer opinar. Dizem que não posso, que não tenho direito, que vou me arrepender, perguntam quem vai cuidar de mim na velhice, ou como vai ser quando encontrar um homem que queira filhos e eu não puder dar filhos para ele.

Depois de tanta dificuldade, decidi entregar, em agosto, um pedido na Secretaria de Saúde da cidade onde moro, Canindé (Ceará), para que autorizem a cirurgia de laqueadura. Agora estou esperando o posicionamento deles. Aguardo ser chamada para uma avaliação com um cirurgião ginecologista. Caso isso não aconteça, terei de procurar a Justiça para fazer valer meu direito.

Acho que o pior é a falta de informação. Os profissionais de saúde não conhecem a lei. Já cheguei a ouvir que precisava ter 25 anos e três filhos. Eu tenho muita certeza que não quero ter filhos. Não faz o menor sentido para mim ser mãe, trazer alguém ao mundo. Não consigo enxergar um bom motivo para ir contra minha vontade, sou feliz assim.

Maria Flávia Moura Cardoso, 27, agente comunitária de saúde