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Mesmo com apoio do presidente, direito ao aborto é dificultado na Argentina

Mulheres pedem legalização do aborto durante marcha em Buenos Aires - Monk Fotografia
Mulheres pedem legalização do aborto durante marcha em Buenos Aires Imagem: Monk Fotografia

Aline Gatto Boueri

Colaboração para Universa de Buenos Aires

15/09/2020 04h00

Eleito em 2019, Alberto Fernández foi o primeiro candidato presidencial abertamente favorável à legalização do aborto na Argentina. Em março, três semanas antes do início das medidas de isolamento social impostas por conta da pandemia do novo coronavírus, o presidente anunciou que enviaria ao Congresso um projeto de lei para garantir o direito à interrupção voluntária da gravidez, plano postergado pela crise sanitária desencadeada pela covid-19.

Ainda nos primeiros dias de governo, o ministro da Saúde, Ginés González García, atualizou o protocolo nacional para interrupção legal da gestação. Entre as principais mudanças, o novo protocolo indica que o risco à saúde da gestante (previsto no Código Penal como justificativa para o aborto legal) deve ser compreendido dentro de uma concepção de saúde integral —física e também psicológica. Ativistas argentinas consideram que a despenalização social do aborto —com uma maior aceitação do direito ao aborto pela sociedade—.é o grande legado do debate sobre a legalização do procedimento que aconteceu em 2018, embora o projeto de lei que ampliaria o direito ao aborto tenha sido rejeitado pelo Senado do país em agosto daquele ano.

Apesar do posicionamento favorável ao direito ao aborto no Executivo nacional, Valeria Isla, diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva do Ministério da Saúde da Argentina, reconhece que a situação das diferentes províncias argentinas é diversa. Muitas vezes, em unidades da federação onde as autoridades locais são abertamente contrárias à garantia do direito, há obstáculos para a realização do aborto mesmo em casos de estupro.

No começo da pandemia, um documento emitido pela área que Valeria lidera reforçou que o acesso à interrupção legal da gravidez é um serviço de saúde emergencial e essencial e, por isso, deve ser garantido também durante as medidas de isolamento social decretadas pelo presidente Alberto Fernández em 20 de março.

No entanto, o número de chamadas com solicitações de interrupções legais da gravidez à linha telefônica que atende demandas por direitos sexuais e reprodutivos passou de uma média de 300 nos três primeiros meses de 2020 para 865 consultas em maio. "Quando alguém liga para esse número é porque já encontrou um obstáculo para praticar um aborto legal. Isso também nos dá uma oportunidade para intervir junto ao sistema de saúde provincial para que o direito seja garantido", explica Valeria.

Um dos problemas que ela identifica é na administração do medicamento que o Ministério de Saúde compra e envia aos sistemas de saúde de cada província para que sejam distribuídos gratuitamente em todo o país. Esse remédio provoca contrações uterinas e é utilizado como método eficaz e seguro para a interrupção ambulatorial da gravidez.

A diretora de Saúde Sexual e Reprodutiva admite que existem províncias que não só dificultam o acesso ao medicamento, como também não aderem ao protocolo para interrupção legal da gestação assinado pelo ministro de Saúde. Segundo Valeria, nesses casos, o governo nacional realiza um monitoramento para trabalhar diretamente com profissionais de saúde disponíveis para realizar o aborto legal.

ONG aponta obstáculos para acesso ao aborto legal

Na Argentina, segue vigente a proibição do aborto, com exceções previstas pelo Código Penal desde 1921: em casos de estupro e risco à saúde da gestante. No entanto, mesmo quando permitido por lei, o acesso à interrupção legal da gravidez ainda é negado em muitos casos.

Um relatório da ONG Human Rights Watch, lançado no final de agosto, apontou que a falta de acesso à informação, a judicialização desnecessária de casos já previstos por lei e a arbitrariedade em critérios de equipes de saúde para realizar o procedimento são alguns dos obstáculos que impedem o acesso pleno ao direito ao aborto. Durante a pandemia, as restrições à mobilidade devido às medidas de isolamento ampliaram os desafios para quem quer interromper uma gestação dentro dos parâmetros permitidos pela lei.

A ONG instou o governo argentino a apresentar ao Legislativo um projeto de interrupção voluntária da gravidez e a trabalhar com os governos provinciais para garantir que o direito ao aborto seja respeitado em todo território nacional.

"Sem dúvidas, ter uma lei de interrupção voluntária da gravidez iniciaria um processo de melhoria importante no acesso ao aborto. Nós trabalhamos com um horizonte de que, quando a lei for aprovada, o sistema de saúde possa estar em condições de dar respostas a essas demandas", diz Valeria.

Diferenças regionais

No início de setembro, a imprensa argentina noticiou que uma menina de dez anos estava internada em uma maternidade da província de Corrientes, na fronteira com o Brasil, a ponto de dar à luz um bebê fruto de estupro, cometido pelo padrasto da criança. Ela foi submetida a uma cesárea alguns dias depois de o caso ganhar notoriedade.

Apesar de ter direito a uma interrupção legal da gestação, a menina foi convencida pela equipe de saúde que a atendeu de que o procedimento poderia ser perigoso. Assustada, desistiu de abortar.

Segundo Nora Maciel, defensora do Ministério Público de Corrientes, o caso não é isolado e reflete uma prática sistemática por parte de trabalhadores da área da saúde na província, que "desconhecem o protocolo para interrupção legal da gravidez promulgado pelo Ministério da Saúde e falsificam informação. Afirmam que o aborto é mais arriscado do que seguir com a gravidez e isso é falso, especialmente nas primeiras semanas da gestação, quando o procedimento pode ser ambulatório e feito com medicamentos".

Nora conta que, mesmo quando a gestante mantém sua decisão de interromper a gravidez, o procedimento costuma ser judicializado, apesar da decisão da Corte Suprema que afirma que "juízes têm obrigação de garantir direitos e sua intervenção não pode se transformar em um obstáculo para exercê-los."

Cidadãs de segunda categoria

Se uma vítima de estupro encontra barreiras para realizar um aborto legal quando chega a um hospital ou centro de saúde, a situação não melhora quando o caso é levado à Justiça. Segundo a defensora, muitas vezes são os próprios assessores de menores —integrantes do Ministério Público provincial responsáveis por defender os direitos de crianças e adolescentes— que requerem medidas cautelares para impedir a realização do aborto.

O caso de uma menina de 13 anos com deficiência intelectual, que em 2019 solicitou um aborto legal após um abuso cometido por um familiar em Corrientes, é um exemplo de como a judicialização do aborto ocorre ainda quando o direito está garantido há quase um século.

Apesar da insistência da mãe da adolescente, a equipe do hospital se negou a realizar o procedimento sob a alegação de objeção de consciência - quando se recorre a razões íntimas para justificar a não prestação de um serviço de saúde. O caso foi levado à Justiça, que finalmente se pronunciou a favor da adolescente e obrigou o hospital a realizar a interrupção da gravidez.

"A atuação política vinculada à religiosidade impede que haja em Corrientes a vigência de direitos que estão disponíveis para outras cidadãs na Argentina. Como mulheres, sentimos que somos cidadãs de segunda categoria", diz Nora.

Tortura e chantagem em hospital

Tucumán, província localizada no noroeste da Argentina, também é reconhecida nacionalmente por práticas que violam o direito ao aborto e contrariam leis nacionais. Foi lá que Lucía (nome fictício), uma menina de 11 anos, chegou ao sistema de saúde com uma gestação de cerca de 16 semanas após ser estuprada pelo marido da avó.

Segundo Fernanda Fernández, ativista da Campanha Nacional pela Legalização do Aborto em Tucumán, o que se seguiu foi uma série de torturas e chantagens por parte da equipe do próprio hospital, que incluíam prometer bens materiais à mãe e à menina em troca de que ela não realizasse o aborto ou mesmo deixar a criança em jejum para castigá-la por insistir em interromper a gestação. Lucía passou por isso durante um mês, até ser submetida a uma cesárea na 27ª semana de gravidez. O bebê morreu dias depois.

Os médicos responsáveis pelo procedimento foram denunciados por homicídio por um grupo de advogados e por outro médico. O caso de Lucía foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos por organizações feministas, que denunciaram as autoridades da província de Tucumán. Em uma oitiva sobre o caso, representantes do próprio Estado argentino reconheceram que os direitos de Lucía foram violados.

"Para além do desgaste que essa situação gerou, o objetivo é enviar uma mensagem de que alguns direitos não vão ser garantidos ou vão ser garantidos de uma determinada maneira. É para gerar terror em mulheres que querem ter acesso a um aborto", aponta Fernanda, que sentiu na pele a pressão contra ativistas pelo direito ao aborto. Ela foi demitida de seu trabalho na secretaria de Desenvolvimento Social da província após denunciar publicamente o caso.

Na outra ponta da garantia de direitos está a cidade de Buenos Aires, capital do país. Apesar de não ter aderido ao protocolo de interrupção legal da gravidez até julho deste ano, a prática vem sido realizada inclusive em mulheres que argumentam que a gestação representa um risco à sua saúde mental.

Segundo dados da Coordenação de Saúde Sexual da capital argentina, em 2014 Buenos Aires registrou 91 interrupções legais da gestação, realizadas em nove estabelecimentos de saúde. Em 2019, 60 estabelecimentos realizaram 8.388 abortos legais, a maioria deles em centros de saúde comunitários, que fornecem o medicamento para interrupção da gravidez de maneira gratuita.

"Na capital, não sentimos a pressão para não realizar a interrupção legal da gestação, principalmente na atenção primária. Quase todos os centros de saúde comunitária garantem o aborto em todas as causas previstas", diz Estefanía Cioffi, médica de família em um centro de atenção primária na cidade de Buenos Aires e integrante da Rede de Profissionais de Saúde pelo Direito a Decidir.

Objeção de consciência x ética médica

Para Estefanía, a objeção de consciência não é compatível com a ética médica. "Nossa moral pessoal não pode ser colocada acima do direito de outra pessoa. Acredito que a objeção de consciência não deveria ser prevista em uma futura lei de legalização do aborto, mas, se chegar a existir, precisa ser muito bem regulamentada para garantir que todas as instituições tenham equipes disponíveis para realizar o procedimento", diz a médica.

Para Valeria Isla, enquanto a legalização do aborto não virar lei na Argentina, é preciso institucionalizar as interrupções legais da gravidez. "Isso significa que deixem de ser realizadas em segredo e que as instituições que prestam esse serviço sejam reconhecidas como garantistas de direitos, que sejam valorizadas da mesma maneira que se valoriza aquelas que levam a cabo um programa bem-sucedido de vacinação. Com isso, cumpre-se a lei, há diminuição na mortalidade materna e garantia de direitos", diz a funcionária do Ministério da Saúde.