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Quem é a argentina de 90 anos que luta pela legalização do aborto

Nelly Minyersky defende os direitos das mulheres há 60 anos  - MONK Fotografía
Nelly Minyersky defende os direitos das mulheres há 60 anos Imagem: MONK Fotografía

Aline Gatto Boueri

Colaboração para Universa em Buenos Aires

03/01/2020 04h04

Na manhã de 14 de junho de 2018, quando a Câmara de Deputados da Argentina aprovou a legalização do aborto, o termômetro indicava a temperatura de 4°C em Buenos Aires. Depois de quase 24 horas de debate, manifestantes reunidas na Praça Congresso vibraram ao ouvir o resultado apertado: com 129 votos favoráveis, 125 contrários, uma abstenção e uma ausência, o projeto de lei seguiria para o Senado —onde acabou rejeitado.

Em meio àquelas milhares de pessoas, mulheres em sua maioria, uma chamou a atenção: Nelly Minyersky, advogada especialista em direito de família, que, com 90 anos, se transformou em uma espécie de rockstar —como ela mesma brinca— para as jovens feministas argentinas, que pedem fotos com ela cada vez que a encontram em alguma manifestação.

"Não sei como explicar isso, acho que o que eu fiz não tem nada de extraordinário", diz Nelly, lembrando o furor que causou, espremida entre várias pessoas, com sua bengala e um pouco de glitter verde nas bochechas. "Naquele dia, fiz a mesma coisa que fiz a vida inteira: apoiar as causas que considero justas, trabalhar e escrever sobre os temas que se relacionam com a minha profissão."

Nelly nasceu em 1929 e começou a estudar direito na Universidade de Buenos Aires (UBA) aos 27 anos. "Naquela época eu me achava muito velha para começar uma carreira. Agora eu tenho uma neta da mesma idade que eu chamo de bebê", se diverte a advogada, que havia estudado engenharia antes, carreira que interrompeu para cuidar dos dois filhos.

"Minha mãe foi a única entre cinco irmãos que foi impedida de estudar e se sentia muito diminuída por isso. Então havia um certo imperativo em casa de que o melhor que eu podia fazer era estudar."

Desde 1961, quando se formou, Nelly exerceu a advocacia com especialidade em direito de família. Ter que lidar diariamente com as restrições aos direitos civis das mulheres fez com que ela se envolvesse com a luta para reverter essa situação, caminho que ela segue até hoje, quase 60 anos depois.

Aborto e direitos humanos

"O que quer dizer ser feminista? Eu me considero uma mulher que trabalha pelos direitos humanos. E existem setores da sociedade —as crianças, as mulheres— que têm direitos vulneráveis.", diz Nelly quando indagada sobre feminismo.

Na última década, a porcentagem de argentinos que acredita que uma mulher deve ter o direito de interromper a gravidez quando desejar duplicou e chegou a 27%, segundo dados do Segundo Questionário sobre Crenças e Atitudes Religiosas, realizado por pesquisadores do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet).

Nelly acredita que o aumento da aceitação popular se deu, em parte, porque o movimento pela legalização do aborto na Argentina conseguiu associar o direito da mulher a interromper uma gestação ao discurso de defesa dos direitos humanos. Esse discurso tem um peso histórico no país por conta de outros movimentos de mulheres, como as Avós e Mães da Praça de Maio, reconhecidas internacionalmente por sua luta por justiça para as vítimas da última ditadura argentina (1976-1983).

Os lenços brancos viraram símbolo da busca destas mulheres por seus filhos e netos desaparecidos na Argentina. Já o lenço verde —que Nelly ostenta com orgulho— é o símbolo da luta pelo direito das mulheres de decidirem se querem ser mães.

Sem desanimar

Quando começou a militar pelo direito ao aborto, no início dos anos 2000, Nelly Minyersky tinha 70 anos e já não se sentia tão velha quanto aos 27. Ela conta que, ao estudar o assunto, se interessou pelo debate jurídico. "Conquistamos muitas leis, mas falta essa. A lei que criminaliza o aborto é um exemplo de lei profundamente discriminatória, porque quem morre são as mulheres mais humildes. E, no caso das meninas que engravidam após estupros, as mais pobres ainda precisam enfrentar essa somatória de vulnerabilidades."

"Vivemos hoje um momento muito delicado, ainda precisamos trabalhar muito. Por outro lado, é maravilhoso, sobretudo porque eu luto há tantas décadas e, de repente, vejo que temos acesso a determinados lugares que antes não tínhamos", diz Nelly, que também foi a primeira mulher a ocupar a presidência da Associação de Advogados de Buenos Aires.

Entre abril e junho de 2018, durante o debate legislativo sobre o aborto, o Congresso convidou especialistas contrários e favoráveis à legalização para expor seus argumentos. Nelly foi uma das primeiras a se apresentar na Câmara de Deputados.

No Senado, passou quase uma hora defendendo seu ponto de vista e não perdeu a compostura nem quando o senador José Mayans afirmou que embriões possuem direitos equiparáveis aos das gestantes porque possuem endereço, "a barriga da mãe", e identidade, "seu DNA". Com tranquilidade, Nelly argumentou que o nascituro não possui nenhum direito civil atribuído a pessoas nascidas e que estas, por sua vez, são muito mais do que o seu DNA.

O fato de Mayans ser hoje o líder da bancada governista no Senado, casa que vetou a legalização do aborto em agosto de 2018, não desanima a ativista, que prefere ver o copo meio cheio. Recém-empossado, Alberto Fernández é o primeiro presidente da Argentina a defender abertamente a interrupção voluntária da gravidez, posição que reforçou durante a campanha e depois de eleito.

"Existe disposição por parte do presidente e isso já significa muito. Vamos ter que lutar porque o presidente não vota. Quem vota são os deputados e senadores —e ele vai precisar convencer essas pessoas", diz a advogada.

Bisavó que conversa sobre aborto

Para que o debate avance, Nelly segue uma rotina agitada. Todos os dias, sai de casa às 9h e volta perto das 21h. Frequenta seus dois escritórios de advocacia, começou a editar a revista GDA, sobre gênero e direito, dirige um mestrado sobre problemáticas sociais infantojuvenis na Faculdade de Direito da UBA e um curso de pós-graduação sobre aborto e direitos reprodutivos.

Nelly também faz aulas de expressão corporal e participa dos plenários da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto, uma aliança nacional de movimentos feministas que redigiu o projeto de lei debatido em 2018, do qual a advogada é coautora. "Eu me sinto bem. Tudo o que eu faço, faço porque eu posso fazê-lo. As pessoas mais velhas também sentem, pensam, têm seus critérios de análise."

A ativista conta que costuma dar conferências em colégios para falar sobre direitos reprodutivos com adolescentes —tarefa que realiza até mesmo nas festas de família. Bisavó orgulhosa, ela ri quando conta que, no aniversário do bisneto de 11 anos, as amigas do garoto vieram abordá-la para perguntar por que ela era favorável à legalização do aborto.

"Em um momento elas disseram: 'Ok, agora vamos falar de feminismo.' Quase desmaiei", conta entre risos.

"Depois, meu bisneto me contou que suas amigas disseram que eu sou muito legal e muito inteligente. Eu nunca imaginei que essas meninas pudessem atribuir isso a mim. Sei que ainda tenho uma certa inteligência, mas esse não é um adjetivo que costumava ser dirigido às mulheres."