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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Pandemia aumenta distância entre mulheres reais e publicidade, diz estudo

mulher publicidade pandemia - iStock
mulher publicidade pandemia Imagem: iStock

Matheus Pichonelli

Colaboração para Universa

10/09/2020 04h00

Com tantas coisas em mente, está mais difícil conquistar o tempo e a atenção do público feminino, principalmente das casadas e com filhos. Pensar em comunicação durante este momento exige compreender a exaustão de jornadas contínuas de trabalho, o estresse pela perspectiva da falta de dinheiro e o medo pelo futuro incerto.

É o que mostra um estudo feito pela 65|10, consultoria especializada em comunicação para mulheres, sobre como as marcas, ao tentar atingir o público feminino, ainda erram a mão por romantizar ou tentar mostrar o lado positivo do que, na vida real, tem o nome de sobrecarga.

No estudo, as autoras Thais Fabris e Maria Guimarães mostram, com base em pesquisas recentes, as razões para o descompasso entre os ânimos em casa e o estado de espírito das propagandas.

Esse descompasso não é por acaso. Um dos levantamentos citados, feito pela Febraban (Federação Brasileira de Bancos), apontou que, entre as pessoas que se consideram responsáveis pelas tarefas domésticas na pandemia, 63% são mulheres e apenas 23%, homens. Elas também são a maioria entre os que dizem ser responsáveis por refeições (68% contra 24% dos homens) e pelo acompanhamento escolar dos filhos (71% contra 19% entre os homens).

Segundo a consultoria, a ideia da tripla jornada feminina foi substituída pela percepção de que as mulheres vivem em uma jornada de trabalho contínua. "As tarefas domésticas, o trabalho do cuidado e o trabalho remunerado são permeados pela carga mental de ter que gerir tudo isso, constituindo um trabalho que só cessa quando a mulher dorme", escrevem as autoras.

Mulher do dia a dia é descabelada, mas no comercial está sempre linda

Fabiana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fabiana França, atriz e professora
Imagem: Arquivo pessoal

É o caso de Fabiana França, atriz e professora de 38 anos de Cajamar (SP) e mãe de três filhos, todos meninos. Durante a pandemia, seu companheiro perdeu o emprego e ela se viu responsável pelas aulas online, as demandas das mães dos seus alunos, a alfabetização do filho do meio e os cuidados com o mais velho, que é atleta e precisa de uma dieta especial. "Tem que dar conta do almoço, da casa e do marido que está estressado", diz.

Buscando uma casa maior para todos, a família tem usado as economias para construir uma nova residência. A obra ficou sob responsabilidade do marido. "E eu cuido de todo o resto", resume.

Sobrecarregada, Fabiana diz não ver graça em propagandas em que famílias aparecem unidas e felizes lavando roupas ou pedindo empréstimo bancário. Ela classifica como cansativas as peças publicitárias que retratam "uma mulher perfeita, linda, maravilhosa" enquanto elas adoecem na vida real. "Me irrita porque a mulher do dia a dia é descabelada. Quase nunca tem tempo de se depilar. Mas na propaganda estão sempre lindas e maquiadas."

Pessoas estão mais sensíveis

"Este estudo é a maior verdade", diz Ana Castelo Branco, diretora de criação na VMLY&R com 26 anos de carreira e passagens por agências como Fischer, Africa, DM9 e WMcCann.

Mãe de duas crianças, uma delas com síndrome de down, ela afirma que a pandemia agravou a sobrecarga feminina e a glamourização da mulher guerreira, que dá conta de tudo e nunca está cansada. "Inclusive glamourizou esse cansaço. Como se o cansaço fosse um sinal de sucesso", define ela numa videoconferência com Universa entre trabalho e tarefas em casa, onde está em isolamento.

Ela diz que, na publicidade, é complicado colocar a comunicação dentro do que chama "pacote mulher" porque as vivências são muito diversas. "A pandemia exacerbou todas as questões sociais. A sobrecarga feminina, as dificuldades de quem tem uma pessoa com deficiência em casa, as dificuldades de quem tem uma pessoa idosa em casa. As pessoas estão mais sensíveis. Se uma mensagem não batia bem em outro contexto, neste momento ela bate pior. A pandemia tornou a comunicação como um todo muito difícil."

Sobrecarga não é estilo de vida, é imposição

Aline - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Aline Castanheira passou a trabalhar como cuidadora de animais em um canil
Imagem: Arquivo pessoal

Um dado citado da pesquisa mostra que, no período do isolamento social, 50% das mulheres passaram a se responsabilizar pelo cuidado de outra pessoa. Destas, 14% cuidam de adultos saudáveis e independentes. Poucas podem contar com apoio de parentes, vizinhos, cuidadores ou mesmo dos companheiros que ficam mais tempo em casa.

O distanciamento social tornou ainda mais difícil, por exemplo, a vida de mães solo ou que criam os filhos sem que os pais estejam sempre presentes. Moradora de Pirituba, na periferia de São Paulo, Aline Castanheira, de 27 anos, trabalhava em um escritório de segunda a sexta e como barbeira aos finais de semana.

Ela perdeu os empregos durante a pandemia e passou a trabalhar de madrugada como cuidadora de animais em um canil e a fazer a barba dos clientes em domicílio.

Mãe de uma criança de cinco anos, Aline conta que o pai do garoto precisou diminuir o valor da pensão durante a crise e deixou de visitá-lo. Muitas vezes, quando a mãe ou a avó não podem ir até sua casa, ela precisa levar o menino para o trabalho no canil. Para ela, é "ofensivo que vendam a imagem de mulher sobrecarregada como se fossemos fora da curva, heroínas e guerreiras".

"Só somos assim porque somos obrigadas. Estou na quarta geração de mulheres da família que viveram e vivem a mesma rotina. E não estaríamos nessa posição de 'admiração' se as responsabilidades fossem divididas de maneira igual. Não é estilo de vida, tudo nos é imposto o tempo todo", diz.

Um erro comum da publicidade, segundo as autoras do estudo, é que, embora mulheres sejam responsáveis pelo sustento de quase metade dos lares brasileiros, a maioria dos serviços financeiros tem homens como protagonistas, como mostraram dois levantamentos recentes analisando os anúncios veiculados no Google e no Facebook.

Se esse tipo de propaganda já não sensibilizava o público feminino antes da pandemia, agora ressoa ainda menos, já que não reflete questões como a frustração e o estresse. Em vez disso, elas sugerem que, ao criar uma comunicação direcionada para mulheres que chefiam seus lares, seja necessário entender as pressões financeiras pelas quais elas estão passando.

"Tenho trabalhado fora de casa 11 horas por dia. Meu companheiro está em home office, trabalha seis horas em média. Quando chego, tenho que 'ajudar na faxina'. Sendo que passei a semana inteira trabalhando como louca e ele estava em casa", diz uma assistente social de Campo Grande (MS) que pede para não ser identificada.

Ela lembra que, desde a infância, as tarefas domésticas eram divididas com a irmã, nunca com o irmão. Ficou doente numa época em que trabalhava muito, ganhava pouco, comia mal e ainda estudava à noite. É o que a faz torcer o nariz para propagandas voltadas ao público feminino em que a mulher é apresentada como batalhadora em ônibus lotados e "plena" porque usa determinada marca de desodorante. Segundo Fabris, esse tipo de abordagem ainda é comum.

Mulheres são levadas a empreender por necessidade

O estudo lembra que, na história recente, mulheres têm investido mais em educação do que homens. "É possível que agora elas também busquem se educar para contornar a crise financeira", escrevem. "Muitas mulheres estão sendo levadas a empreender por necessidade."

Tudo é ainda mais delicado quando se trata de pessoas negras, que, conforme pontua o estudo, têm 38% mais chances de morrer de covid-19 por estarem na base da pirâmide social, terem menos acesso a serviços de saúde e se posicionarem na linha de frente do atendimento aos doentes nos hospitais.

Na tentativa de valorizar a mulher negra, afirmam as autoras, a comunicação corre o risco de estereotipá-la como forte e guerreira, sem margem para que essa mulher seja apenas humana, tenha sentimentos e que eventualmente não dê conta de uma carga que é insuportável. Uma saída apontada por elas é trazer mais pessoas negras para o processo criativo.

"Criar uma comunicação que retrate corretamente as mulheres negras ajuda a tirá-las do lugar em que o racismo as colocou", dizem Thais Fabris e Maria Guimarães.

Segundo Fabris, as mulheres negras na propaganda continuam seguindo um padrão de magreza e são mais contratadas as mulheres de pele mais clara e traços europeizados. "Além disso, ainda existem estereótipos de comportamento como a negra superforte, a guerreira que supera tudo e isso também desumaniza. Uma abordagem mais humanizada inclui mais pessoas e conta histórias diferentes. Uma maneira de acertar é ter as mulheres contando suas próprias histórias."

Ela define a comunicação de massa como um espelho da sociedade que molda hábitos, costumes e influencia a forma como a sociedade se vê. "O melhor retrato é aquele que foge de estereótipos, de histórias que já foram muito contadas. A gente ainda não tem os melhores retratos porque não tem mulheres, negros e pessoas LGBTQ+, entre outros, controlando as narrativas."

Com base nos estudos levantados pela página Mulheres na Pandemia, a consultora mostra ainda que 43% do público feminino percebem uma alta do custo de manutenção da casa, estão mais conscientes de seus gastos e atentas a promoções que aliviam o aperto do orçamento.

Vida pesada contrasta com leveza das propagandas

Segundo Thais, a pandemia agrava diversos quadros que já existem na vida das mulheres, como a jornada infinita, a instabilidade financeira e a vulnerabilidade física e psicológica. "Tudo isso já acontece, só ficou muito pior. Acreditamos que ficou ainda mais gritante a distância entre a vida real das mulheres e a forma como elas são retratadas na publicidade."

Um exemplo de mensagem bem sucedida, segundo ela, foi a campanha do dia dos pais de uma empresa de cosméticos em que homens aparecem em diversas situações com os filhos: cortando o cabelo das crianças e fazendo o jantar. A propaganda falava da importância da presença.

A consultora aponta que existe uma cultura, por parte das empresas, para dar "leveza" às propagandas e evitar temas considerados "pesados". "Mas a verdade é que a vida das mulheres é pesada mesmo. Tenho certeza de que uma mulher que é mãe e vive a jornada de trabalho infinita é capaz de criar até uma peça de humor a partir da sua vivência durante a pandemia, mas provavelmente o homem branco hétero cis que compõe a maioria das equipes criativas [das agências de publicidade] vai errar a mão se fizer o mesmo."

Embora o foco do estudo seja a publicidade, a autora afirma que, quando se fala em comunicação, "pensamos no conceito mais amplo, abrangendo notícias, entretenimento e até o trabalho de influenciadores e influenciadoras, que hoje tem muito alcance e precisa ser responsabilizado também".

Um exemplo bem sucedido

Quando o assunto é responsabilidade na comunicação, a diretora de criação Ana Castelo Branco explica ser complexo, por exemplo, veicular mensagens do tipo "você está em casa, estamos com você" em um contexto em que muita gente não está passando por bons momentos. "É um incômodo tremendo."

Um exemplo bem sucedido de campanha, segundo ela, foi a mensagem "divida este peso" de uma fabricante de amaciantes. "A causa era exatamente dizer aos homens que eles precisam dividir essa carga com as mulheres. Eles foram muito inteligentes porque falam da realidade de uma forma muito bonita, muito poética. Mas sempre traz um peso mesmo porque é a vida. Só que não dá para ter 200 anunciantes dizendo 'divida a carga'. Isso cria uma dificuldade, realmente, de comunicação."

Para ela, retratar uma situação real sem carregar nas tintas de uma realidade bruta ou de um otimismo ingênuo é o grande desafio. "Quem tiver essa solução na mão tem ouro. Tem que pensar muito." E pondera: "Se formos retratar o mundo como ele é, as dificuldades como elas são e ponto final, a gente vai ter campanhas sempre muito parecidas."