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Monja isolada em caverna por 12 anos ensina a lidar com a morte e a solidão

 Jetsunma Tenzin Palmo: "Isolamento incomoda porque as pessoas não aprenderam a olhar para si" - Divulgação
Jetsunma Tenzin Palmo: "Isolamento incomoda porque as pessoas não aprenderam a olhar para si" Imagem: Divulgação

Camila Brandalise

De Universa

22/05/2020 04h00Atualizada em 23/05/2020 10h19

A monja Jetsunma Tenzin Palmo, 76, hoje um dos nomes mais importantes do budismo tibetano, passou 12 anos isolada em uma caverna no Himalaia na década de 1970. Nos momentos em que pensou que fosse morrer, como quando uma nevasca bloqueou as entradas de ar, conta que virou a chave do medo e preferiu substituí-lo pela curiosidade.

"A morte faz parte da aventura. É quando descobriremos o que vem depois. Eu acho isso emocionante", diz, em entrevista a Universa, por telefone. Para ela, podemos encarar a quarentena, e a consequente sensação de proximidade da morte que a pandemia traz, da mesma maneira. "Você está vivo, não morto. Não desperdice sua vida sofrendo."

Agora confinada no mosteiro para mulheres que criou na Índia —ela também luta por uma maior participação feminina no budismo—, diz ver vários pontos positivos na quarentena. Ela afirma que quem fura o isolamento e não pensa coletivamente merece nossa compaixão —"É triste imaginar que alguém tenha uma mente tão estúpida"— e diz que é um erro ficar se lamentando por querer "a vida normal" de antes. "Aquela vida estava matando o planeta. Mas pode ser que quando isso acabar volte a ser como era. O ser humano é um aluno muito lento."

Leia abaixo trechos da entrevista:

A senhora passou 12 anos isolada em uma caverna e conta no livro "No Coração da Vida" (editora Lúcida Letra), que enfrentou algumas vezes a possibilidade de morrer. O que aprendeu nesse período que pode ajudar as pessoas que estão confinadas hoje com medo da morte?

É natural ter medo de morrer ou de perder pessoas queridas. Mas a gente sabe que vai morrer em algum momento. Nossa jornada é uma aventura. Na morte, descobriremos o que vem depois. Eu acho isso emocionante. Mas a questão é que, se você não morreu, deveria pensar em o que fazer com sua vida agora. Não desperdice-a sofrendo. Existe esse exercício de imaginar o que você faria hoje se morresse amanhã. Mas não estou falando de viajar para algum lugar ou comer algo diferente. Não importa o que você come. O que é importa é: o que você vai fazer com a sua mente? Se você morrer amanhã, que sentimentos vai carregar? Deixe os ressentimentos e a raiva irem embora. Pense nas pessoas com amor, diga a elas que as ama. Agradeça por existirem. Por que não fazemos isso?

A religião pode ajudar nesse momento?

Com certeza. Use suas crenças espirituais, sejam elas quais forem, na sua rotina. Não pense em Deus só na hora de ir à igreja. Pense em qualquer que seja o objeto de sua devoção: Jesus, uma santa. Mas abra seu coração, não apenas repita uma oração decorada. Se renda, peça ajuda, peça para que cuide de você.

Por que tanta gente se incomoda com o isolamento?

Porque não tem paz dentro de si. Nós não aprendemos a viver sozinhos, e a maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de olhar para si. Está sempre olhando para fora, para as relações, ou está sempre no Whatsapp. Estar sozinho é aprender a ser amigo de você mesmo. Pode ser mais prazeroso do que ameaçador. No meu caso, me isolei porque quis, para poder evoluir nas minhas práticas [espirituais, como meditação] sem ser interrompida. Tinha muita neve em volta da caverna, ninguém conseguia chegar, era a situação ideal. Hoje estou confinada de novo, uma pessoa até brincou que agora somos monjas enclausuradas. Mas temos árvores, flores.

Ficar em casa reclamando, frustrado, pensando que gostaria de sair, que quer a 'vida normal' de volta, tudo isso é um desperdício.

Há lado positivo na pandemia?

Sim, tem muita coisa positiva. Neste momento, as pessoas não estão fazendo mal ao planeta, bagunçando com ele. Várias, principalmente as mais jovens, estão reconhecendo que os humanos estão matando nosso mundo, se perguntando se não deveríamos viver uma vida diferente. Você viu como as taxas de poluição caíram rápido? Os rios, o céu, se limparam rapidamente.

Também acredito que é um momento maravilhoso para se tornar amigo de você mesmo. Não se coloque para baixo, pare de mandar mensagens negativa para você o tempo todo. Se cure, olhe para a sua vida, não seja seu inimigo. Deseje coisas boas para você. Assim, você vai acabar desejando coisas boas aos outros, e não apenas àqueles de quem você gosta. Tem muita coisa boa acontecendo. Por que focar só no mal?

É difícil não focar no negativo em um país como o Brasil, que ultrapassou a marca de 1.000 mortes diárias por Covid-19, além da desigualdade social e da crise política que vivemos. Como olhar para o lado positivo sem ser egoísta ou parecer ignorar a tragédia lá fora?

As mortes existem, as pessoas estão sempre morrendo. Aceitar isso não significa ignorar. A questão é pensar: ok, não posso resolver o vírus, não cabe a mim, mas eu posso dar comida para pessoas que estão passando fome. O que mais posso fazer para ajudar? Isso já é um pensamento positivo. Ficar em casa se sentindo triste, desgraçado, não traz nada de bom para ninguém. Não vai mudar nada. Então faça alguma ação que ajude outra pessoa, que seja mandar mensagens positivas para alguém.

Como virar essa chave no cotidiano?

Tudo depende da mente. Não depende do que acontece com a gente, mas de como respondemos ao que acontece, é aí que criamos nossa realidade. Podemos lidar com o que acontece ou criar mais problemas. Ficar chateado, ficar com raiva, isso não ajuda em nada. O desafio agora é como usar essas dificuldades, esses medos, de maneira positiva para mim e para os outros. Buda dizia que há dois casos de sofrimento: o físico, que é inevitável, pois temos um corpo, e o mental. Mas, no segundo caso, a escolha por sofrer é nossa, não tem um porquê.

Cure suas feridas e transmute-as para a empatia genuína e para a ajuda ao próximo.

A senhora fala muito sobre a importância da compaixão. Como ter compaixão por pessoas que não têm pelos outros, por exemplo, furando a quarentena e expondo terceiros ao vírus?

Você pode se perguntar: 'Eu gostaria de ter essa mente?'. E aí sentir compaixão ao notar a estupidez delas, pois provavelmente você não quer ser assim. Mas elas também não conseguem se livrar da mente que têm. É triste pensar que alguém não consegue se importar com os outros, que toma esse tipo de decisão. É importante ter compaixão porque quanto mais reconhecemos o sofrimento alheio, mais percebemos o quanto sofremos. É quando vemos que estamos conectados e a bondade genuína chega. Essa é uma cura emocional para nós também. Isso nos torna sensíveis para o sofrimento alheio. Não significa se sentir depressivo, mas abrir o coração e reconhecer a conexão com os outros.

Também vivemos uma crise política, em que há muitas brigas e raiva envolvidas. Como lidar com a raiva que essa situação gera?

Há vários caminhos, mas eu diria que, no geral, a pessoa que tem muita raiva precisa olhar para a natureza do próprio sentimento. Se você sente muita raiva de alguém, normalmente é porque sente raiva de você mesmo. É um sentimento que está sentado dentro de você. Primeiro, permita que a raiva saia. Depois, pergunte a ela: 'Qual é o seu problema?'. Escute, de onde ela vem? Em que parte do corpo você a sente? Faça isso com compaixão e sem julgamento. Aos poucos, ela vai se transformar em uma emoção diferente, não negativa. Leva tempo.

É muito importante não responder com raiva a uma pessoa raivosa. Isso é jogar gasolina no fogo. Seja paciente. Brigar porque alguém te tratou mal não é força, é fraqueza. Socialmente, ter raiva, ser 'macho', é ser forte. Não é. É ser fraco, como uma criança de dois anos que, se não tem o que quer, fica brava e começa a gritar. Ter força significa lidar com suas emoções.

A senhora acredita que, quando a pandemia passar, a humanidade vai ter aprendido algo? Vamos ter uma vida menos estressante e destrutiva do que antes?

Não sei. O ser humano é um aluno muito lento. A Europa teve duas grandes guerras, muitos jovens morreram. Disseram que tinham aprendido, mas depois de uma [guerra] logo procuraram outra. Acho que mais gente vai começar a pensar sobre isso. O problema é que as pessoas que estão no topo é que tomam as decisões. As multinacionais, grandes organizações. Eles não querem mudar. Ainda pensam, e vão continuar pensando, em lucro. Então é muito difícil imaginar uma mudança em uma escala global. Até porque tem muita gente querendo voltar para a 'vida normal', e não se deu conta que aquela normalidade estava matando o planeta.