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Proteção caseira, receio e troca de casa: uma médica relata seu 1º plantão

A médica recém-formada Isabela Feitosa - Arquivo Pessoal
A médica recém-formada Isabela Feitosa Imagem: Arquivo Pessoal

Carlos Madeiro

Colaboração para Universa

04/05/2020 04h00Atualizada em 04/05/2020 09h04

Julho de 2020 marcaria para Isabela Feitosa, 25, a realização de um sonho: sua formatura em medicina. Após seis anos de estudos, a festa já estava marcada, mas a chegada do novo coronavírus fez com que as comemorações dessem lugar ao trabalho emergencial.

Na última quinta-feira, ela deu seu primeiro plantão na vida, em um pronto-socorro da periferia de Maceió. Em 24 horas, ela conta que viu chegar cerca de 100 pacientes com síndromes gripais.

"É um cenário completamente diferente do que eu estava preparada para encontrar. Estava preparada para realizar um sonho, mas que agora é um sonho com receio também. Um receio de até onde eu posso chegar com as minhas limitações, das limitações da ciência e das limitações de lugares em que eu trabalho", relata a Universa.

No seu primeiro dia como médica, Isabela conta que sentiu na pele a dificuldade de enfrentar um vírus novo, de alto grau de contaminação e sem tratamento conhecido.

"A OMS [Organização Mundial da Saúde] preconiza que você não toque nesses pacientes que têm síndromes gripais. Mas a gente sempre ouviu durante a faculdade que um bom exame físico pode fechar um diagnóstico e descartar muito exame, por exemplo. E, ao não poder tocar nele, a relação médico-paciente fica muito desgastada; é muito sensível. Então você perde muito do que você aprendeu", lamenta.

A médica recém-formada Isabela Feitosa - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A médica Isabela Feitosa em seu primeiro plantão
Imagem: Arquivo Pessoal

Diante da Covid-19, Isabela percebeu o que os médicos mais experientes —e que já estavam na linha de frente— alertam: não se sabe muito da doença, e é preciso cautela.

"Quando a gente estuda para poder atuar, pensa no melhor do paciente, como a gente pode ajudar mais. A gente aprende muito a teoria, e com a prática a gente vai pegando a mão. Mas essa é uma doença tão nova, tão recente, que a gente não tem muita teoria ainda para se embasar. É uma teoria ainda muito incerta, cada dia é um protocolo que pode mudar, a gente tem que estar sempre se atualizando, e muitas vezes a gente não tem disponível o que quer: não tem EPI (equipamento de proteção individual) suficiente, não tem óculos de proteção", conta.

Na unidade em que a médica passou a atuar, a demanda pelo atendimento é dividido entre pacientes de síndromes gripais e outros problemas de saúde. "Essa máscara transparente por cima da N95 [que é usada por profissionais em hospitais] foi meus pais que fizeram", completa.

Saída às pressas de casa

A Covid-19 também mudou sua rotina fora dos plantões. "Eu não moro mais com os meus pais. Tive que alugar um apartamento de última hora para não os expor, porque eles são idosos. Ou seja, são muitas preocupações que tenho", diz.

Talvez um dos desafios seja encarar o mundo novo que a medicina enfrenta. "Eu não imaginaria nunca que, assim que eu me formasse, teria ainda mais preocupações com doenças que a gente encontra normalmente nas emergências."

Isabela conta que, por tudo isso, o cenário é completamente diferente do que ela foi ensinada em suas aulas e seus estágios. "Você se sente exposto e de mãos atadas, de certa forma, por não ter o medicamento, não ter uma conduta perfeita. Você também está expondo a sua saúde e a saúde de outros pacientes, você está sempre preocupado em se higienizar", conta.

Convites sem parar

Para completar o curso, faltava a Isabela e a alguns outros colegas da Unit (Centro Universitário Tiradentes) apenas o estágio optativo —que é aquele em que o estudante escolhe repetir no final da formação. Mas a pandemia fez com que as faculdades de medicina do Brasil fossem autorizadas a colar grau antes da hora para liberar os novos médicos no mercado.

Uma das coisas que chamaram a atenção de Isabela foi a falta de profissionais para dar conta da demanda gerada pela pandemia.

"É uma imensidão de médicos que foram afastados. Eu me formei esperando encontrar o mercado de trabalho ainda tranquilo, porque há mais cursos disponiveis. Mas a verdade é que estamos precisando muito de médicos, as escalas estão desfalcadas", explica.

A jovem médica já está carregada de plantões inclusive no interior do estado. "Tinha proposta para Maceió, mas foi opção minha ir ajudar essas cidades e também entender como é a dinâmica no interior", conta.

No sábado, ela deu plantão na Santa Casa de São Miguel dos Campos, na Zona da Mata. Na próxima semana, será a vez de Palmeira dos Índios, no semiárido alagoano.

"Nós estamos recebendo proposta que não imaginávamos para ficar em enfermaria, cuidados intermediários, terapia intensiva. A gente teve na formação uma gama de conhecimentos para atuar, mas não teve tanta vivência. Muitos recém-formados estão aceitando e enfrentando o desafio pela necessidade e pela falta de médicos mais experientes que possam assumir os cargos", diz.

Para os cargos de maior complexidade, ela conta que o quadro de profissionais está sendo mesclado. "Muitas vezes, um recém-graduado está assumindo um cargo de maior responsabilidade junto de outro que está na área há mais tempo. É um cenário que parece meio de guerra, mas que estamos dispostos a dar nossa contribuição."