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Mandar nude é exercício de sexualidade como qualquer outro, diz antropóloga

Apesar de ser uma prática comum de expressão da sexualidade, as nudes, quando enviadas por mulheres, recebem uma punição moral - Getty Images/iStockphoto
Apesar de ser uma prática comum de expressão da sexualidade, as nudes, quando enviadas por mulheres, recebem uma punição moral Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise

De Universa

06/01/2020 04h00

Cada vez que uma nude de uma famosa vaza, um novo alvoroço toma conta da internet. Foi assim com Carolina Dieckmann, Luisa Sonza, Scarlett Johansson, Demi Lovato, Vanessa Hudgens. Em menor escala, vazamentos também causam um auê na vida de desconhecidas que têm suas fotos íntimas vazadas e são alvos de ataques em seus grupos sociais — na escola, na família, no trabalho.

Antropóloga especialista em violência contra a mulher, Beatriz Accioly Lins afirma que toda essa comoção em torno do compartilhamento de nudes só existe por uma questão de gênero: as "polêmicas" que envolvem as fotos atacam, em sua maioria, as mulheres, e demonstram que ainda não é permitido a elas que exerçam livremente sua sexualidade. "A nudez feminina faz parte de uma intimidade que tem que ser guardada. Se não seguir isso, é moralmente condenada", diz.

O tema é a base de sua tese de doutorado pela USP (Universidade de São Paulo), "Caiu na Rede: Mulheres, Tecnologias e Direitos Entre Nudes e (Possíveis) Vazamentos". No trabalho, que levou quatro anos de pesquisa, ela discute a relação das fotos íntimas com a liberdade sexual feminina, a moralidade e a violência digital, além da evolução da legislação envolvendo o crime de vazamento de imagens. Também mostra histórias de mulheres que foram duramente condenadas por familiares por enviarem imagens eróticas: mães cujos filhos se afastaram após verem suas nudes e uma mulher que viu seu companheiro pedir a separação depois de receber fotos vazadas dela.

O que popularmente chamamos de vazamento de nudes é considerado crime, com pena de um a cinco anos de prisão. A Lei 13.718, de setembro de 2018, prevê como prática criminosa "dispoinibilizar, transmitir [...], distribuir, publicar ou divulgar fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha [...], sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia".

Leia trechos da entrevista de Beatriz a Universa:


Prazer x punição

"É um exercício de sexualidade como qualquer outro", diz Beatriz, sobre o envio de nudes. O problema, explica, é que a condenação da prática tem um recorte de gênero: se for uma mulher, será punida.

"A sociedade prescreve que o corpo e a sexualidade femininos sejam controlados de modo que elas devam ser alguém que resguarda a própria imagem. É aquela história de 'se dar valor'. As pessoas presumem que as outras exerçam sua sexualidade, mas da mulher se exige recato, só pode na intimidade", diz. "Dizer para não mandar não faz sentido. A tecnologia está muito imbuída na nossa vida, é como pagamos contas, conhecemos pessoas, arquivamos documentos, procuramos emprego... Por que essa esfera [da sexualidade] não vai estar na tecnologia também?"

"Se não tivesse esse julgamento, não existiria o problema do vazamento: se a mulher não fosse condenada por enviar imagens eróticas, não existiria a ideia da violência."


"Meu filho nunca me perdoou"

Para a pesquisa, Beatriz conversou com diversas mulheres que enviaram imagens de nudez pelo celular e que tiveram suas fotos compartilhadas.

Elas relatam ter passado por problemas familiares graves. Uma delas enviou fotos suas a um homem com quem começou a sair após se separar. Depois, voltou com o ex-marido, e o parceiro anterior enviou para ele as imagens que a mulher havia lhe mandado. O marido pediu a separação definitiva, e a filha não quis mais falar com a mãe.

Com outra, o celular foi roubado, e o ladrão pediu dinheiro para não divulgar seus nudes. A mulher não aceitou a chantagem, e ele enviou as imagens para uma lista de contatos que ela tinha. Um deles era seu chefe, que ameaçou demiti-la. Não chegou a cortá-la da empresa, mas passou a fazer diversas piadas ofensivas com a situação.

"As mulheres têm muito mais medo de que suas fotos de nudez sejam descobertas por homens. Eles têm as atitudes mais drásticas, rompem relações, ofendem. Tive a impressão de que a reação das outras mulheres é mais compreensiva."


Consentimento na era da tecnologia

"Sempre há o risco [de uma nude vazar]", afirma Beatriz, que se refere ao ato como uma violência de gênero. "Mas, em qualquer exercício de sexualidade, se transita entre o risco e o prazer, pois sempre há o perigo de a outra pessoa não respeitar o seu limite e virar algo violento", afirma.

Além disso, não basta confiar no receptor das mensagens: em tempos de Whatsapp e redes sociais, não é só ele que tem acesso à conversa. "Quando falamos de consentimento mediado por tecnologia, precisamos lembrar que os mecanismos que usamos para o envio das imagens são feitos por empresas com interesses comerciais e que não são muito transparentes com o que acontece com nossos dados", lembra.

"A digitalização dos conteúdos permite que sejam preservados por mais tempo do que dura uma relação, e essa conta também pode ser hackeada, invadida."

Por que mulheres mandam nudes?

"De maneira geral, elas enviam para quem estão seduzindo, como interação erótica", diz Beatriz, que ressalta não ter encontrado, durante sua pesquisa, nenhuma mulher que enviasse fotos sem um pedido da outra pessoa —diferentemente do que é feito por alguns homens, que enviam imagens não solicitadas do próprio pênis.

Mas muitas delas, ressalta a pesquisadora, também produzem fotos apenas para elas mesmas. Para se sentirem bonitas, desejadas, para brincar e experimentar com poses e com a própria aparência. "Muitas dessas imagens nem são produzidas para serem compartilhadas. São uma maneira de exercitar a autoestima."

Beatriz fala de um grupo no Facebook chamado Pimentinhas, do qual fez parte durante a pesquisa, em que todas as sextas-feiras se fazia a "tour dos elogios". Composto apenas por mulheres, com uma média de idade entre 20 e 30 anos, as usuárias compartilhavam suas nudes para que outras as elogiassem. "É como um exercício de resistência", diz.

A página, porém, acabou depois que foi invadida por um homem, que passou a chamar todas as integrantes de piranhas, vagabundas e lésbicas. A suspeita é que se tratava do namorado de alguma usuária, que procurou as administradoras para contar que ele havia mandado prints do grupo para a família dela.

"A exposição também acontece com homens, a legislação, nesse caso abarcada pelos crimes de dignidade sexual, vale para todos. Mas os efeitos sobre as mulheres são muito maiores. De maneira geral, o preconceito social cai sobre as mulheres que escapam do ideal de recato que deveriam seguir."