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Mês da Consciência Negra

Lei do racismo faz 30 anos e essas mulheres dizem o que ainda precisa mudar

MC Soffia - Arquivo Pessoal
MC Soffia Imagem: Arquivo Pessoal

Mandê Agência

Colaboração para Universa

03/11/2019 04h00Atualizada em 05/11/2019 12h00

"Serão punidos os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional." É o que prevê a Lei de número 7.716, do Código Penal brasileiro, conhecida como a Lei Caó, em alusão ao seu autor, o ex-deputado e militante negro Carlos Alberto Caó. Em outras palavras: o racismo no Brasil é crime. E inafiançável.

Mas será que, na prática, é tão simples? Para a professora em direito da humanidade e outras legitimidades Amarílis Costa, três décadas após a sanção da lei, completadas neste ano, ainda há uma nebulosidade em torno da compreensão do que é racismo em nossa sociedade. É sobre isso que a advogada estuda em sua dissertação de mestrado "Estado antinegro: a máquina estatal e suas múltiplas ações. Um estudo da Lei Caó".

Amarílis explica que a Lei Caó ajudou o brasileiro, como sociedade, a compreender a gravidade do racismo como crime, mas tal conhecimento ainda bate de frente com a crença cultural de que o problema não existe mais no país, que foi superado - um pensamento equivocado e que dificulta ainda mais a punição de infratores.

"No Brasil, ainda há uma estrutura das relações sociais muito complexa, que cria uma série de dificuldades na aplicação desta lei. É muito bom a gente ter uma lei antidiscriminatória, vanguardista, apesar de ter vindo após de cem anos de escravidão. Mas ainda é uma lei problemática, pois não é uma política pública, de conscientização", afirma.

Mas, mesmo diante de um cenário que ainda precisa de muitos avanços, Amarílis afirma que a legislação atual é fruto de lutas dos movimentos sociais negros e do debate racial existente no Brasil.

"Foi o Movimento Negro Unificado que conseguiu fazer com que o Estado brasileiro reconheceu o racismo como crime - e essas vitórias abrem precedentes para outras vitórias. Faz parte da herança de luta e resiliência que herdamos."

Já fazendo jus a essa herança está uma geração que se prepara para um futuro de maneira consciente de seus direitos, como conta a rapper MC Soffia, 15: "Faz muita diferença ter nascido em um país onde a lei já existia. Minha geração já entende o que é racismo e se pergunta 'o que podemos fazer para que isso mude?'".

É com esse questionamento, de uma geração que vai ditar o futuro, que trouxemos outras quatro mulheres negras para esta conversa. Suas dificuldades com a lei fazem parte de suas histórias, assim como os aprendizados que farão parte da vida de meninas como MC Soffia.

Zelia Amador - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Zélia Amador de Deus, 69, professora universitária
Imagem: Arquivo Pessoal

Zélia Amador de Deus, 69, professora universitária e cofundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), Belém

"Eu sou de uma geração em que o racismo não era considerado crime, apenas uma contravenção penal. Não tínhamos apoio, a quem recorrer, e o Brasil era um exemplo de democracia racial.

Mas essa mesma geração foi a que lutou pela criação da lei que o criminaliza. Dentro do movimento negro, ao lado de outras mulheres negras amazônidas, eu vi, pela primeira vez, o racismo ser, de fato, debatido e passar a ser inafiançável e imprescritível. Uma grande vitória.

Infelizmente, há uma dificuldade em conseguir colocar a lei em prática. Lembro de, ainda jovem, ter sido abordada na rua, confundida pela polícia com uma empregada doméstica que havia roubado uma residência. Não havia qualquer semelhança, apenas sermos duas mulheres negras. E, 30 anos depois, isso ainda acontece. Sou otimista, vejo mudanças, mas também vejo que o futuro continua sendo de luta."

Vitória Felipe, 20, cineasta e historiadora - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Vitória Felipe, cineasta e historiadora
Imagem: Arquivo Pessoal

Vitória Felipe, 20, cineasta e historiadora, Santos (SP)

"A lei é importante e fundamental, sim, mais ainda não facilita minha vivência enquanto cidadã. Acaba sendo aplicada apenas a casos considerados muito graves. Isso acontece porque, no meu cotidiano de mulher negra, percebo como a sociedade ainda precisa entender o que é o racismo.

As pessoas acreditam que o único ato racista e passível de punição é chamar uma pessoa negra de macaca. Não existe a noção de que o comentário sobre o meu cabelo ou sobre eu não saber sambar é racista também.

Esse racismo cotidiano, que muitas vezes não se enxerga mas que é tão comum, também fere. Em um país que escravizou negros por 300 anos e tem resquícios gravíssimos desse período até hoje, combater isso, com o apoio da lei, tem que ser um projeto de educação."

Vivi Duarte, jornalista, 41, São Paulo

Vivi Duarte - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
a jornalista Vivi Duarte
Imagem: Arquivo Pessoal

"Infelizmente, a lei do racismo não é levada a sério no Brasil. Quando vemos, por exemplo, apresentadores de TV sendo racistas e não acontecendo nada com eles, testemunhamos a impunidade. Se racismo é efetivamente crime, essas pessoas teriam que ser punidas como exemplo social.

Mas, o que acontece é que, mesmo depois de 30 anos, a lei do racismo ainda possui muitas brechas que dão oportunidade para nós, negros, sermos diariamente segregados e vítimas de violência. A lei precisa ser revista e se tornar mais forte, mais efetiva, mais intensa. Só assim conseguiremos realmente uma reparação histórica e ver mais de 54% da população ser respeitada como ser humana e cidadã."

Maria Chantal, 25, estilista, nascida em Luanda (Angola) e moradora do Rio de Janeiro

Maria Chantal, 25, estilista - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A estilista Maria Chantal
Imagem: Arquivo Pessoal

"Eu acredito muito na necessidade das lei, mas nunca precisei, de fato, usá-la em alguma situação de racismo. Talvez, seja porque eu nunca me senti segura o suficiente para ir a uma delegacia legitimar o ocorrido. Em muitas situações, tive medo de ser tida como culpada e não a vítima.

Eu estou no Brasil há 19 anos e a questão de estar em uma diáspora africana me dá um pouco mais de noção do quanto o país ainda é racista.

Por exemplo, muitos dos meus parentes em Angola ficam incrédulos ao saber que, mesmo com a maioria população sendo negra, isso não se reflete no que a grande mídia brasileira expõe para fora. Eles não entendem porque não vêem negros nas novelas e, por causa disso, quase não acreditam que a maioria da população seja negra no país."

MC Soffia, 15, rapper, Cotia (SP)

"A fala com atitude, a autoaceitação e o empoderamento das meninas negras são marcas da minha geração, a chamada geração Z. E acho que isso é resultado de lutas de mulheres negras de gerações anteriores, como minha mãe e minha avó, contra o racismo e para que ele virasse crime.

Então, faz muita diferença ter nascido em um país onde a lei já existia. É isso que tento passar nas minhas músicas para meninas negras que se inspiram em mim e, mais conscientes, inspiram outras meninas também. Eu acredito muito que a minha geração vai ter conquistas que os meus ancestrais nem chegaram perto. Não sei se a lei vai fazer, um dia, o racismo acabar, mas sei que vamos reagir."

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