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Mês da Consciência Negra

"Minha vida é quebrar barreiras", diz a 1ª mulher negra doutora em física

Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Mandê Agência

Colaboração para Universa

16/11/2019 04h00

"Você nunca vai usar física na vida mesmo." A frase que Sônia Guimarães ouviu de uma professora quando ainda era estudante da faculdade de Física na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), ao ter uma bolsa de iniciação científica recusada, a atormenta e indigna até hoje. "Eu queria tanto que ela visse o que eu 'não fiz com física', porque realmente ela se negou a me dar a bolsa. Será que ela ficou sabendo do que aconteceu comigo depois? Eu mesma gostaria de ir lá e contar!".

E Sônia teria muito o que dizer. Mesmo sem a bolsa de iniciação científica, terminou a graduação, optou pela carreira acadêmica e logo ingressou no mestrado em Física Aplicada no Instituto de Física e Química de São Carlos, da USP. Em seguida, após um breve período como pesquisadora na Itália, engatou o doutorado em materiais eletrônicos, pelo Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade de Manchester, na Inglaterra, retornando ao Brasil em 1989 - apenas 30 anos atrás - como a primeira mulher negra doutora em física no país.

Com diplomas em mãos, passou como professora por algumas universidades públicas até, em 1993, tornar-se a primeira professora negra de uma das faculdades mais conceituadas e disputadas do Brasil, o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica), em São José dos Campos (SP). Detalhe: naquele ano, a instituição de tradição militar ainda não aceitava mulheres como estudantes. "Nunca houve um plano exato disso ou daquilo, as coisas foram acontecendo, pessoas e oportunidades aparecendo, e eu nunca disse 'não'", conta.

Exceção e pioneirismo

A história de exceção e pioneirismo de Sônia, no entanto, começaram ainda na infância. Nascida e criada em Brotas, no interior de São Paulo, filha de pai tapeceiro e mãe comerciante, estudou sempre em escola pública e era uma das poucas meninas da turma que se destacavam pelas notas altas nas disciplinas de ciências exatas, principalmente em matemática.

É dessa época uma das primeiras cenas de racismo que a professora tem lembrança, quando foi obrigada a sair do turno da manhã, horário em que estudavam os melhores alunos, e mudar para a tarde, dando o lugar para outra aluna. "Ela era a filha da faxineira, mas era branca e, embora não fosse boa aluna, queria estudar de manhã. Então tiraram eu, a única pretinha que era uma das primeiras da sala, e me colocaram à tarde."

Aos 17, Sônia decidiu trabalhar e investir o salário que ganhava em um cursinho pré-vestibular. O sonho era cursar engenharia civil, mas foi aprovada no curso de física da UFSCar, sua segunda opção. Ela agarrou a chance, novamente um marco em sua vida: era a primeira pessoa da família a entrar no ensino superior.

"No segundo ano do curso, ainda prestei vestibular para engenharia civil de novo, mas comecei a ter aula de física moderna, área na qual hoje sou especialista, me apaixonei e não quis mais mudar. Não me arrependo. Foi a física que me fez conquistar tanto e me tornou um exemplo."

A trajetória de Sônia no privilegiado mundo da ciência e tecnologia brasileira, embora notável, a fez assumir uma luta diária e solitária em um espaço que afirma ser racista e machista.

Segundo o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior, dos 63.234 docentes, apenas 251 são mulheres negras, o que, em termos percentuais, representa menos de 0,4% do total. Destas, apenas 23 são da área de exatas - Sônia é uma delas.

Em 26 anos no ITA, ela conta nos dedos o números de professoras e professores e negros, mas já perdeu as contas de quantas vezes foi julgada incapaz. "Eles [professores] dizem que não sou inteligente o suficiente. Se fizerem um comentário sobre eu ser mulher, posso processá-los. Se falarem que é porque sou negra, racismo é crime. Mas se o problema é eu ser burra, não dá pra fazer nada. A todo momento eu tenho que provar que sou o bastante", conta.

Em sala de aula não é diferente. O número de mulheres é ainda restrito - entre os 110 aprovados em 2018, elas foram apenas sete. Já alunos negros, segundo dados do próprio instituto, são cerca de 20% atualmente e somente no vestibular deste ano foram adotadas as cotas raciais; 1.033 se inscreveram para disputar 22 vagas.

"Não é uma seleção fácil e exige muitos sacrifícios desses meninos. O vestibular tem de 10 a 15 mil candidatos para pouco mais de cem vagas por ano. Aí, eles entram na sala do ITA e vêem uma pessoa como eu, que eles só viram limpando a casa ou cuidando deles, dando aula, dando nota? Não me aceitam. Mas sou eu que digo 'não, você está errado'. E você não pode corrigi-los, porque são as pessoas mais inteligentes do Brasil", ironiza.

Apesar da torcida contra, Sônia diz que desistiu de se aposentar neste ano para receber os alunos cotistas. Queria estar presente para auxiliá-los, consciente do que representa sua trajetória para esses alunos e da responsabilidade da missão que tomou para si: estimular a diversidade de raça e gênero na ciência brasileira.

"Do contrário, vamos continuar com um montão de homens brancos fazendo teoria que não leva nada a lugar nenhum. O olhar de mulheres e pessoas negras é o caminho para uma ciência mais humanizada e de impacto na vida cotidiana", explica. "E eu sei dos números que eu represento. Quero que outras mulheres e negros olhem para mim e vejam que é possível. Eu combato todos os dias um cenário que contrasta de mim só por estar aqui, mas eu quero mais que isso. Precisamos lutar uns pelos outros. Minha vida é quebrar barreiras."

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