"Diziam que estava tirando vaga de um homem", diz primeira diretora da Poli
Na parede do corredor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) decorada por quadros dos dirigentes da instituição, a imagem da engenheira Liedi Bernucci, de 60 anos, destoa. Ela é a primeira mulher a ocupar o cargo de direção da escola que possui 125 anos de história. Sua fotografia estará lá daqui a quatro anos, quando encerra o mandato.
Liedi nasceu em casa, na cidade de Jarinu, no interior de São Paulo, estudou na rede pública e decidiu seguir carreira na engenharia ainda na adolescência. Em casa, na década de 60, quando ainda não se falava em discussão de gênero, tinha o apoio dos pais para brincar de carrinho e outros brinquedos rotulados como masculinos. “Das bonecas eu só gostava de construir casinhas, com prego e martelo. Com 9 anos, ganhei um autorama. Na minha casa isso nunca foi visto com preconceito, brincava muito livre.”
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O autorama virou profissão: fez engenharia (passou em 35º lugar, das 620 vagas), mestrado e doutorado na Poli e se especializou em pavimentação e construção de estradas na Suíça. Casou-se com um físico suíço, tem dois filhos formados em administração. Mesmo na cadeira de diretora, não abandonou a sala de aula. Leciona há 32 anos no curso de graduação. “Ensinar para mim é uma terapia.”
Seis meses após ocupar o cargo, Liedi diz que se surpreendeu com a repercussão positiva entre as mulheres da universidade. Conta que muitas alunas, professoras e funcionárias ainda a cumprimentam e a sensação é que houve uma “satisfação coletiva das meninas” ao se sentirem representadas. Na nova posição, a professora diz que “não dorme tranquila” ao ver que a inclusão dos alunos de escola pública ainda não ocorre plenamente na Poli e torce para que cada vez mais as meninas vençam o machismo se interessem pela ciência. Assim como ela.
Pavimentação de estradas
Durante o mestrado, ela ganhou uma bolsa para estudar na Suíça. "Tive um professor, Franco Balduzzi, que falava que o Brasil precisava muito fazer estradas porque sem elas, as pessoas não teriam acesso à educação, à saúde e a economia ficaria estagnada. Ele dizia que eu tinha de ir para essa área", conta.
Quando voltou ao Brasil, começou a trabalhar na área de transporte e aeroportos. Em 2010, começou a trabalhar com ferrovia. "Se não investirmos em infraestrutura de transporte na área ferroviária de maneira consistente, não vamos ser competitivos economicamente. E aqui na Poli estamos formando massa crítica", ela diz.
Machismo na engenharia?
"Sempre houve preconceito contra as mulheres, quem não sentiu é porque nunca prestou atenção. Mas era uma época em que não tínhamos com quem reclamar. Quando cheguei na Poli, em 1977, éramos só 4% de mulheres", conta. Liedi diz que episódios que viveu poderiam tê-la afastado da área, mas "a minha paixão era maior do que um idiota falando alguma coisa".
"Uma vez estava entrando na sala e o professor falou: não sei por que mulher quer fazer engenharia se depois o que ela quer é casar e largar tudo. Ele entrava na sala e contava quantas meninas havia e falava ‘tantas vagas perdidas, roubadas dos meninos.’ Era terrível. Hoje um cara desse seria processado", lembra.
Atualmente, 19% dos alunos da Poli são do sexo feminino. Ela comenta que escolas como MIT e Cornell [nos Estados Unidos] têm mais mulheres pelos movimentos de apoio, que as provocam a estudar exatas. "É preciso também trabalhar com os professores na base, não dá para falar que matemática é difícil para uma menina de 7 anos. Aqui temos um projeto de pré-iniciação cientifica, as meninas ficam deslumbradas em fazer robôs, também fazemos oficinas de brinquedos [programa Poli Cidadã, direcionado a alunos de escolas públicas]".
Inclusão de cotas na Poli
Pela primeira vez, a Poli reservou parte das vagas (37%) para alunos de escola pública e para estudantes autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Liedi é a favor da inclusão, mas acha que precisam de mais preparo. "Saltamos de uma inclusão de 19% (em 2013) para 37,5% (em 2018) de alunos de escola pública, mas o problema é que muitos alunos têm uma falha de base. O que a universidade fez para se preparar para receber esses alunos? Nada. Não é uma questão de falar você é bem-vindo. Como um aluno de 17 anos, de 18 anos vai lidar com a falta de base para fazer disciplinas dificílimas da Escola Politécnica? Como vai ficar a autoestima dele, o que vamos fazer por eles?", questiona. Hoje o grêmio politécnico oferece aula de reforço, onde os alunos dão aulas para outros alunos, mas a diretora reforça que é preciso fazer mais alguma coisa.
"Sair nos jornais que a USP abre para as cotas pode ficar muito bem com a opinião pública, mas precisamos trabalhar para a sociedade e precisamos saber receber esses alunos e dar as ferramentas para eles continuarem. Esse é um dos temas que mais me preocupam, precisamos tratar profissionalmente disso. Eu não acho que a USP estava preparada para fazer a inclusão dessa forma. A Poli ainda tem dificuldade e vamos ter de enfrentar isso de frente e com responsabilidade. Temos muitas comissões trabalhando nisso, mas estamos atrasados. Enquanto a gente não resolver, não temos de ter a consciência tranquila", diz.
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