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Ao descobrir autismo do filho, ela percebeu que seu pai sofria do mesmo mal

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Claudia Rato

Colaboração para o UOL

22/11/2017 04h00

Órfã de mãe após um parto difícil, Cristiane era filha de um pai ora agressivo, ora ausente, que jamais aceitou a perda da mulher. A infância ela lembra como triste e solitária. Na adolescência, poucos amigos e uma timidez profunda. Casou-se e, por anos, se via como uma mulher submissa, mãe de um filho autista e outro com transtornos psicológicos. 

Logo que nasceu, seu pai a entregou para a avó paterna. Criada entre adultos, com figuras opressoras, sentia-se desprotegida e fragilizada fora de casa. “Na escola, eu era o patinho feio. Minha timidez me impedia de chegar até as pessoas”. Na adolescência, foi morar com o pai, na mesma casa em que ele viveu poucos anos com a falecida mulher. Estava tudo no mesmo lugar, como a mãe deixou. Leia o relato de Cristiane:

Virei dona de casa aos 15 anos e me casei aos 19

"Logo que fui morar com meu pai, não demorou muito para as discussões começarem. Ele não era uma pessoa de fácil convivência, muito temperamental, teimoso e com várias manias estranhas. Tinha crises nervosas e destruía tudo o que via pela frente, além de se autoflagelar toda vez que algo dava errado. Daí, eu me trancava no quarto e chorava sozinha.

Foi nessa época que conheci meu então namorado, e meu pai demorou a aceitar essa relação. Para me castigar, ele escondia tudo que eu gostava de comer em um quartinho e também trancava a sete chaves o aparelho de som. Mas eu tinha as cópias. Quando ele saía, era o meu momento de paz, eu e meus LPs do Legião.

As brigas aumentaram. Fui morar com minha avó. Foi libertador. Voltei a estudar e consegui um emprego. Mas continuava tímida e cada vez mais submissa. Meu pai pediu várias vezes para eu voltar, mas não consegui. Aos 19 anos, me casei e dei uma chance a ele. Fomos morar em sua casa. Infeliz ideia. Não fiquei lá seis meses.

Iniciamos nossa luta como qualquer casal: aluguel, apartamento financiado, até que ganhei um terreno do meu pai e construímos nossa casa.

Foram anos de relativa paz! Mas sentia um vazio em minha alma...

Após 10 anos de casada, engravidei, mas, infelizmente, perdi o bebê. Nosso primeiro filho nasceu em 2000. Com o nascimento do neto, vi em meu pai um homem feliz, brincalhão e em paz. Era o pai que eu gostaria de ter tido!

Entrei para a faculdade e ele pagou todas as anuidades. Foram os quatro anos mais felizes de sua vida! Quando, enfim, conquistamos um relacionamento de harmonia, ele faleceu subtamente, seis meses antes da minha formatura.

Não foi fácil. No velório, os amigos dele me surpreenderam, dizendo que ele vivia falando orgulhoso do neto e de mim... Algo que nunca me disse. Senti que a pessoa que mais me amou no mundo havia ido embora. Logo em seguida, passei no concurso público e fui lecionar Matemática em uma escola, numa comunidade carente. Amava demais o que fazia!

Tinha um filho autista e não sabia

Meu filho foi crescendo e percebi muitas dificuldades na escola. Ele não conseguia se alfabetizar e era muito indisciplinado. Passou por fonoaudiólogos, psicólogos, mas ninguém dava um diagnóstico. Nesse meio tempo, engravidei e perdi novamente. Até que, em 2007, nasceu meu segundo filho.

Fui observando o desenvolvimento do meu primogênito e tive certeza de que havia algo errado. Porém, meu marido não aceitava, achava que tudo estava certo, afinal, era o que profissionais afirmavam.

Demorei a buscar ajuda, mas, enfim, reagi e levei meu filho a uma neuropediatra. Tive o diagnóstico: TEA (autismo-síndrome de asperger) e TDAH (transtorno de déficit de atenção). Foi desesperador e, ao mesmo tempo, um alívio, pois um norte surgia.

Aos poucos, a mulher submissa passou a se transformar na mulher guerreira. Resolvi voltar a estudar e cursei psicopedagogia. E não parei mais de estudar: emendei com psicomotricidade e neuroaprendizagem.  Passei a atender crianças carentes em um projeto da faculdade e entender cada vez mais o meu caso.

Tive um pai autista e também não sabia

Meu pai era asperger, como meu filho. Acabei descobrindo que meu pai estava também dentro do espectro autista, era igual ao meu filho, e que toda sua “esquisitice”, dificuldade de expor e entender sentimentos, teimosia, rituais, coleções, pobreza de expressões faciais, autodidatismo, crises, tinham explicação.

Isso foi libertador, pois entendi o por quê de ele ser como era, e tive ainda mais certeza do tamanho de seu amor por mim. A vida me permitiu ser filha de um asperger para ser mãe de um!

Adoeci, mas não era minha hora de ir embora. Voltei, mas voltei outra mulher!

Paralelo a todas essas descobertas, a submissão em casa foi ficando cada vez mais insustentável, até que, em 2012, tive uma infecção renal que me levou a uma sepse (infecção generalizada) e fui parar na UTI, entre a vida e a morte.

Logo depois, passei por uma crise conjugal, quase separei, mas, no final, meu marido me disse: “Você nunca me contou que não estava feliz”. A mulher submissa ficou para trás. Renasci depois dos 40! Passei a lutar por meu filho com todas as minhas forças e conhecimento. E nosso casamento foi renovado. Continuei me dedicando a meus alunos e pacientes do projeto.

Achei que estava vivendo no paraíso, até descobrir que o caçula sofria de transtornos psicológicos

Percebi que meu filho mais novo passou a ficar muito agressivo e, com meu olhar treinado, desconfiava do diagnóstico que foi confirmado: TOD (transtorno opositor desafiador) também com transtorno de ansiedade e TDAH. É muito comum esse problema em famílias com irmãos que têm necessidades especiais.

Ele sempre nos acompanhava nas terapias do mais velho e acabou se sentindo negligenciado. É um mecanismo de defesa para chamar a atenção.

Esse transtorno é capaz de acabar com casamentos e até desencadear tragédias...

Ele me agredia verbalmente e fisicamente. Não existe dor maior do que ser agredida por alguém a quem tanto se ama. Eu não tinha vontade de sorrir, perdi a vontade de tudo, chorava sem saber como ajudar meu filho. Era um misto de amor e ódio, pois ele me desestruturava. As crises eram rápidas e ocorriam em casa e locais públicos. Depois ele se sentia deprimido e arrependido.

Se eu não tivesse a ânsia da busca pelo conhecimento já teria sucumbido. Mas detectamos a tempo o problema, mesmo porque, se não tratado, pode evoluir para transtorno de conduta e, na vida adulta, para personalidade antissocial, paralelo à psicopatia

Meus filhos estão evoluindo, e com eles eu cresço a cada dia

Assim que descobrimos o problema do caçula, meu marido se aposentou, me exonerei do cargo público e mudamos para o interior. Abri meu consultório na nova cidade. Hoje, meu menino mais velho está com 17 anos, e é um adolescente lindo! Evoluiu muito! O menorzinho está sendo acompanhado por profissionais e ainda tem crises, mas menos intensas.

E meu marido é meu grande companheiro de todas as horas, meu amigo, pai participativo, meu grande amor. Hoje, estou pronta para ajudar outras crianças e outros pais. Enfim, eu tinha tudo para dar errado, mas, dentro de mim, sempre existiu uma força. 

Olho para trás e concluo que tudo estava certo, em seu lugar. Talvez se eu não tivesse passado por tanto sofrimento não seria quem sou hoje.