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'Meu marido esconde crachá na palmilha do sapato', diz esposa de PM no Rio

Manifestação de familiares e viúvas da polícia fluminense em frente ao Monumento aos Mortos na Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo, zona sul da capital - Reprodução/Facebook
Manifestação de familiares e viúvas da polícia fluminense em frente ao Monumento aos Mortos na Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo, zona sul da capital Imagem: Reprodução/Facebook

Marcos Candido

Do UOL, em São Paulo

14/09/2017 04h00

Mulheres que vivem sob a iminência da morte de um ente próximo ou até já enfrentam a tristeza de quem já se foi. Uma rede composta por mais de 200 delas vem se mobilizando para oferecer apoio emocional, jurídico e financeiro a outras viúvas, esposas e familiares de policiais mortos no Rio de Janeiro. Em 2017, até o início de setembro, mais de cem agentes já foram assassinados no Estado, deixando um rastro de luto e revolta. 

Medo de ser a próxima

A estudante de Farmácia Carine Diniz, 30, uma das líderes do grupo “Esposas e Familiares, Somos Todos Sangue Azul”, afirma que a rede compra medicamentos e alimentos para viúvas e instrui famílias a como obterem pensão em caso de morte. No último dia 03, a equipe da qual ela faz parte também realizou um ato no Aterro do Flamengo, Zona Sul da cidade, em homenagem aos policiais mortos. Muitas das outras manifestações foram realizadas em velórios dos próprios agentes. “Tenho medo [de tomar a frente do movimento], mas prefiro ter medo a me sentir covarde e ser a próxima viúva”, diz.

Esposa de um policial militar, Carine diz interagir com mulheres que tiveram esposos e irmãos carbonizados até a morte, membros amputados e até mesmo sequelas neurológicas. Para não fazer parte da lista, ela convenceu o marido, morador da baixada fluminense, a esconder o crachá de policial militar na palmilha do tênis em dias de folgas ou a caminho do batalhão onde trabalha.

Não à toa, de acordo com levantamento feito pelo UOL no fim de agosto, dos policiais mortos no Rio neste ano, a maioria estava de folga ou no trajeto para o trabalho. Carine revela que a prevenção ajudou o PM durante uma tentativa de assalto.

Caça a policiais

Um desfecho diferente acometeu o marido da empresária Lucília Lance, 29. Em fevereiro, o cabo Thiago de Oliveira Lance, 31, foi identificado como policial militar e morto em uma tentativa de assalto. Na época, Lucília estava grávida de quase oito meses. “Eu estava esperando ele para jantar… Nosso filho nasceu 48 dias depois [da morte].”

"Prefiro ter medo a me sentir covarde e ser a próxima viúva" Carine Diniz, uma das líderes de viúvas da PM

Os efeitos e os números de uma guerra

Professora da UERJ e estudiosa do sofrimento emocional na polícia fluminense, Dayse Miranda afirma que conviver sob o medo constante da morte, a longo prazo, pode causar aos policiais problemas de saúde como tremedeiras, dependência química, ansiedade e depressão. Uma tensão similar também paira sobre os familiares. “A família do PM também é alvo da violência uma vez que muitos deles moram em locais de risco e áreas pobres como na baixada fluminense (Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Belford Roxo) e Zona Oeste (como Campo Grande). Como conviver com traficantes que ameaçam a vida de seus esposos e filhos policiais?”, questiona.

"Como conviver com traficantes que ameaçam a vida de seus esposos e filhos policiais?" Dayse Miranda pesquisadora da UERJ

Para Silvia Ramos, coordenadora do centro de estudos sobre violência da Universidade Cândido Mendes, as mortes de policiais estão ligadas às falhas do modelo de segurança pública estadual, o que para a pesquisadora é uma das causas para a onda crescente de violência. “Esse sistema de polícia com base no confronto e não na investigação e elucidação [de crimes] produz muitas mortes, mortes de policiais, trocas de tiros com balas perdidas e também mortes causadas por policiais.”

Em protesto no Supremo Tribunal Federal, em Brasília. Grupo de viúvas, esposas e familiares pede melhorias na segurança pública do Rio de Janeiro - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Imagem: Reprodução/Facebook

Até julho deste ano, o Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP) registrou 3.093 homicídios dolosos, 642 mortes por intervenção policial e 160 latrocínios (roubos seguidos de morte) no Rio de Janeiro. O instituto também informou que há um prazo de dois anos para que os dados sobre crimes solucionados sejam divulgados. No segundo semestre de 2015, último ano de divulgação dos números, apenas 18,55% dos casos de homicídio doloso em aberto haviam sido solucionados com êxito.

Morto em trabalho

O marido de Jéssica Pacheco, 24, faz parte desses registros de crimes violentos que envolvem os membros da instituição. Em fevereiro deste ano, o soldado Michel de Lima Galvão, 32, foi morto em um tiroteio contra o tráfico próximo à UPP Jacarezinho, onde trabalhava há pouco mais de dois anos, na Zona Norte da cidade. No fim de 2015, ele havia compartilhado um áudio via WhatsApp no qual lamentava a morte de ao menos três colegas e alegava más condições de trabalho para enfrentar o crime da região.

Jessica estava casada com o soldado havia seis anos. Quando soube da morte do marido, procurou recomeçar a vida com o apoio psicológico oferecido pela corporação. Apesar disso, abriu mão do benefício pouco tempo depois. “Não gostava... Me trazia muitas lembranças", relembra. Hoje ela conta somente com o apoio das mulheres da rede. 

Somos Todos Sangue Azul

Segundo a líder Carine, a “Somos Todos Sangue Azul” está em vias de reconhecer oficialmente a associação em cartório. A página no Facebook do grupo já conta com três mil curtidas e novas manifestações de mulheres devem ser convocadas em breve.

Em nota, a diretoria de Assistência Social da Polícia Militar não informou se houve aumento de viúvas à procura da pensão por acidente oferecida pelo Estado em casos de homicídios. A assessoria afirma apenas que familiares de vítimas têm até um mês para receber o seguro de acidente pessoal, cujo valor é calculado por uma seguradora conveniada.