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Vítimas de crimes sexuais na Síria buscam justiça na Alemanha; entenda

A violência sexual baseada em gênero é um dos crimes mais comuns nas casas de detenção do regime sírio - iStock
A violência sexual baseada em gênero é um dos crimes mais comuns nas casas de detenção do regime sírio Imagem: iStock

Lisa Ellis

Da Deutsche Welle

24/06/2020 17h43

Muitas vezes, o horror começa já no momento da prisão. Primeiro, os soldados tocam as detentas de maneira inadequada. Na chegada ao presídio, elas são então forçadas a se despir. A invasão de seus corpos começa geralmente com uma revista agressiva e íntima por um guarda masculino.

Para milhares de detentas em prisões do regime sírio, isso marca o início de uma jornada para o inferno - que muitas vezes termina com as vítimas violadas e então excluídas de suas famílias e comunidades.

A violência sexual baseada em gênero é um dos crimes mais comuns nas casas de detenção do regime sírio, afirma a especialista em direito internacional Alexandra Lily Kather. No entanto, é também um dos mais subnotificados.

"Sabemos de ataques aéreos, sabemos de armas, sabemos de tortura, sabemos do ['Estado Islâmico']", diz Kather, que trabalha no Centro Europeu de Direitos Constitucionais e Humanos (ECCHR, na sigla em inglês), em Berlim.

"Mas o que não tem sido mostrado suficientemente - seja pela mídia, seja em termos de exigir que os culpados sejam responsabilizados - é a violência sexual [nas prisões do governo], apesar da devastação que ela causa tanto para a vítima quanto para a sociedade como um todo."

Na semana passada, Kather e seus colegas do ECCHR deram um passo que esperam que mude o estado das coisas de maneira radical. Juntamente com a ativista de direitos sírios Joumana Seif, Kather apresentou uma queixa criminal à promotoria federal da Alemanha pedindo que a violência sexual e de gênero na Síria seja considerada crime contra a humanidade.

Atos espantosos de crueldade

A Alemanha foi o primeiro país a julgar por crimes de guerra dois ex-oficiais de inteligência sírios na cidade alemã de Koblenz, sob o princípio da jurisdição universal, que permite que indivíduos sejam julgados por crimes cometidos no exterior.

Apesar de aplaudir o ato, o ECCHR criticou o fato de a Alemanha não incluir a violência sexual como um crime contra a humanidade em quaisquer acusações ou mandados de prisão, o que, na opinião da entidade, é uma grave negligência e um golpe para as vítimas.

"A partir das evidências de que dispomos", diz Kather, "podemos ver claramente que a violência sexual fazia parte de um ataque sistemático e generalizado à população civil e, portanto, deveria ser categorizada como um crime contra a humanidade."

O Conselho de Direitos Humanos da ONU compartilha dessa opinião. Em relatório perturbador publicado em 2018, o órgão relatou abusos de forma minunciosa, com base nos depoimentos de quase 500 sobreviventes e testemunhas.

De todas as partes envolvidas na guerra, as forças e milícias pró-governo responderam pela maior parte das agressões sexuais e estupros. As Nações Unidas concluíram que eles usam a violência sexual como arma para instilar medo e humilhar.

Na seção sobre prisões, o relatório descreve atos espantosos de crueldade contra uma menina de nove anos, estuprada por um guarda sírio. Também há relatos de outras vítimas sendo torturadas sexualmente e ameaçadas de estupro ou estupradas na frente de outros guardas e detentos.

"Leve-a. Faça o que quiser com ela", disse um general de brigada a um policial de baixo escalão que demonstrava interesse em uma detenta, segundo o relatório.

Homens e meninos também foram estuprados e violados sexualmente na cadeia, mas, segundo o texto, mulheres e meninas foram alvo de maneira desproporcional.

A queixa do ECCHR

A necessidade de buscar reparação por tais atrocidades está no cerne do caso defendido pelo ECCHR. A entidade age em nome de sete sobreviventes, incluindo quatro mulheres sírias e três homens atualmente radicados na Europa.

Todos eram civis detidos em prisões operadas pelo serviço de inteligência da Força Aérea da Síria em Aleppo, Hama e Damasco. O ECCHR afirma ter identificado nove responsáveis pelos crimes, com base no testemunho das vítimas e em outras evidências.

Como parte da queixa criminal, os advogados internacionais do ECCHR emitiram um pedido à promotoria federal da Alemanha para que um mandado de prisão existente contra Jamil Hassan, ex-chefe do serviço de inteligência da Força Aérea da Síria, seja alterado para incluir a violência sexual como um crime contra a humanidade.

Além disso, eles pediram a abertura de investigações, também com foco em crimes de natureza sexual, contra outros oito supostos autores dos crimes, assim como a expedição de mandados de prisão.

"Mulheres pagam duplamente"

A ativista de direitos humanos e especialista jurídica Joumana Seif ressalta a importância de caracterizar crimes como "sexuais", em oposição a outras formas de brutalidade, especialmente na Síria.

"A maioria dos sobreviventes são mulheres e, quando elas são libertadas, apesar de terem experiências tão terríveis na prisão, são discriminadas [do lado de fora]. Elas pagam duplamente", diz Seif. "Elas precisam de serviços especiais de saúde, de ajuda psicológica e do direito de serem protegidas. Elas precisam de reconhecimento."

Por sua vez, homens submetidos a violência sexual na prisão sentem, muitas vezes, que tiveram sua masculinidade comprometida e temem perder o respeito de seus colegas, afirma Kather. Para as mulheres, contudo, as consequências podem ser duplamente devastadoras, reitera.

"Se uma mulher foi violada sexualmente, ela é condenada por ter manchado a honra da família e será marginalizada", diz Kather. "Isso desestabiliza a família, e se famílias são desestabilizadas uma após a outra, acaba-se desestabilizando o núcleo da sociedade."

A justiça para as vítimas de crimes sexuais e de gênero também é vista como chave para quaisquer futuros esforços de reconciliação, especialmente considerando o que o relatório da ONU chamou de "quase total ausência de responsabilidade por tais violações".

Por ora, no entanto, Kather se concentra no presente. "Trata-se de um regime, de um Estado que usa os corpos das pessoas com o objetivo político de oprimir e aterrorizar", avalia. "E exigimos responsabilização à promotoria alemã."