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"Ele tirou a camisinha sem avisar." Fique atenta, isso é crime. Denuncie

"stealthing" é o termo usado para quem tira a camisinha durante o sexo sem avisar a parceira. - iStock
"stealthing" é o termo usado para quem tira a camisinha durante o sexo sem avisar a parceira. Imagem: iStock

Colunista do UOL

05/10/2020 04h00

"Conheci ele em um app. Tínhamos vários amigos em comum e conversávamos sobre tudo. Ele desabafou sobre o pai doente, suas angústias e disse que só falava essas coisas comigo. Me envolvi e aceitei quando ele pediu pra vir em casa, pois não estava legal. Acabou rolando um clima e fomos pra cama. Ele quis transar sem camisinha. Disse que pra mim ou rolava com camisinha ou nada feito. Ele aceitou e o sexo rolou. Terminando a transa, estávamos um de frente para o outro e aí ele me solta: "tirei o preservativo enquanto estávamos transando". Me senti culpada, usada e completamente desamparada"

Recebemos este relato de uma Solta no nosso inbox esta semana e nos assustou saber que esta prática tem sido cada vez mais recorrente, principalmente em transas de sexo casual. Ao procurar um centro de testagem do SUS após o ocorrido, nossa Solta soube pelo infectologista que, só naquela semana ele havia atendido outras 4 mulheres que passaram pela mesma situação. Isso sem contar o grande número de mulheres que devem sofrer este tipo de violência de forma calada, sem recorrer a ninguém.

"Toda relação em que não há um consenso pode ser considerada estupro. Em geral, quando pensamos na palavra "estupro" a associamos a traumas corporais e violências físicas severas. Mas este tipo de atitude caracteriza sim uma violência, pois claramente não houve consenso. "É preciso denunciar", reforça Sara Gama, coordenadora nacional da comissão permanente de violência doméstica e coordenadora do grupo especial de defesa da mulher e população LGBT do ministério público da Bahia. Apesar de algumas pessoas considerarem que esta prática não é estupro e desta ser uma colocação ainda polêmica, Sara reforça que é uma questão de interpretação jurídica e que a mulher pode sim entrar com a denúncia "É questão de interpretação. Na conjunção carnal mediante fraude, a meu ver, o ardil seria no intuito de obter o relacionamento de cunho sexual. No caso do homem tirar a camisinha, no meio da relação sexual, sem que a mulher consinta, pra mim é uma violência, por isso o meu posicionamento. Mas como disse, tudo é sujeito a interpretação." reforça Sara.

A série I May Destroy You da HBO retrata com maestria uma situação semelhante e, assim como nossa Solta, a personagem demorou para entender que havia sido estuprada e que deveria tomar uma atitude. Infelizmente, essa paralisação e a falta de clareza das mulheres ante à situação (uma vez que as mesmas se encontram abaladas e desamparadas) têm sido usadas como estímulo para que homens sem escrúpulos sigam adotando essa prática e, pior, ainda tirem vantagem da situação.

Alguns meses antes do ocorrido, nossa seguidora já havia denunciado no aplicativo um outro homem que se vangloriava da mesma conduta violenta:

"Recebi um vídeo de um homem com quem havia começado a conversar no app onde ele transava SEM CAMISINHA com uma moça. Junto com as imagens veio uma mensagem contando que ele não estava sentindo prazer e tirou o preservativo no meio da transa SEM ELA PERCEBER e fez questão de gozar dentro dela. Falou pra ela que "não percebeu que a camisinha saiu durante" e "pagou a pílula do dia seguinte."

O absurdo do "não te conheço, não te respeito"

Na lógica perversa desse homem - e de muitos outros que têm cometido esse tipo de violência - a busca pelo próprio prazer é o que pauta a relação sexual, e a parceira é vista como mero objeto. E o preocupante é pensar que a dinâmica das tais relações serve como álibi na mente torta e criminosa desses caras: o fato de eles não terem qualquer envolvimento emocional com as parceiras e terem conhecido as mesmas em contextos onde buscavam sexo casual faz com que eles achem que podem transar como quiserem, descartar a mulher, bloqueá-la das redes e seguir a vida impunemente.

No caso do vídeo, não só esse homem cometeu violência sexual ao tirar a camisinha, como também incorreu num outro crime ao vazar um vídeo claramente sem autorização da mulher com quem estava transando. Que mundo é esse onde os caras andam tão impunes que não só fazem esse tipo de abuso como ainda contam para uma outra mulher como quem conta vantagem, achando que vão seduzir com isso? Ele realmente acha que foi malandro e fez uma brincadeirinha em nome do próprio prazer?! E pior, que pode resolver as coisas pagando uma pílula do dia seguinte? Além de ser ofensivo, a pílula não resolve as questões relacionadas à ISTs. Isso é nojento, criminoso e não pode mais passar impune.

Culpa, vergonha e medo de ser julgada ainda faz com que muitas mulheres sofram caladas

"A primeira coisa que pensei quando ele me contou que havia tirado a camisinha foi: a culpa é minha! Abri minha casa pra ajudar um cara que nunca vi na vida! Isso é um sinal de Deus que eu cheguei no limite! Que essa vida de sexo com estranhos dá nisso!"

Esse desabafo de nossa Solta é um eco da sensação de muitas mulheres. É muito perverso como a gente é educada para sentir culpa sempre - em vez de nossa primeira reação é ter raiva desse homem imbecil, vem a culpa por ter aberto espaço. E essa culpa ganha um julgamento moral-religioso, pois é vista como uma espécie de punição por ela ter se aberto a uma relação casual. Existem diversas relações casuais permeadas de afeto e respeito e é muito importante que a gente desconstrua isso o quanto antes: a culpa não é sua!

"Infelizmente muitas vítimas ainda são julgadas como culpadas quando vão denunciar este tipo de crime em delegacias comuns, principalmente quando recebidas por homens para realizar um boletim de ocorrência. Não é incomum que elas ouçam perguntas como "mas por que você abriu a casa pra ele?" ou "por que bebeu tanto?". Isso inibe as mulheres de procurarem auxílio. Por isso é importante ir em uma delegacia da mulher", comenta Sara Gama.

E além de culpa, violências como essa podem gerar quadros de depressão, síndrome do pânico e crises de ansiedade. "Eu me senti a última das mulheres... achando que nenhum homem iria mais me querer... uma sensação de estar estragada...", desabafou nossa Solta. Se fechar e se fragilizar ainda mais é um reflexo comum após esse tipo de violência, por isso é importante sempre recorrer a ajuda psicológica tanto de especialistas como de pessoas de sua confiança.

Como proceder nesses casos de violência

Denuncie

"O quanto antes a denúncia for feita, melhor. Mas hoje a justiça já entende que não é preciso de provas físicas para registrar esse tipo de violência. Então, mesmo que demore uns dias, é importante que a vítima procure uma delegacia da mulher para registrar o ocorrido." afirma Sara Gama.

Alice Bianchini, especialista em direitos das mulheres e autora do livro "Crimes Contra Mulheres: Lei Maria da Penha, Crimes Sexuais e Feminicídio" reforça o ponto de Sara: "Considero que seja violação sexual mediante fraude pelo seguinte: a mulher concordou com a relação sexual, portanto, nao estamos diante do estupro que exigiria um constrangimento, violência ou grave ameaça para a prática do ato sexual. No caso, ela concordou com a relação com a utilização de preservativo. Quando o homem tira o preservativo e a mulher só percebe depois, houve, sim, um engodo, uma fraude. A livre manifestação da vítima foi impedida. Ele deveria ter consultado: 'Você concorda em termos relação sexual sem preservativo?' Se não teve a anuência da vítima, estamos falando de violação sexual mediante fraude, pois houve a relação, mas sem o uso de preservativo, conforme havia sido combinado, ou seja, com uma fraude."

Cuide de sua saúde

É essencial que a mulher procure o quanto antes um posto de saúde (como nossa Solta fez) para que possa tomar todos os medicamentos de profilaxia. Hoje em dia existe um protocolo que se chama PEP (profilaxia pós exposição), que é usado em situações como essa. O ideal é procurar ajuda em até 72 horas e existe uma chance enorme de conseguir prevenir HIV. Eles também fazem testagem de outras ISTs, administram pílula do dia seguinte e realizam um acompanhamento de sua saúde por três meses.

No caso de nossa Solta, o infectologista sugeriu que ela entrasse em contato com o homem que a havia violentado para saber se ele havia transado sem preservativo com outras mulheres nos últimos três meses e, pasmem, ele confessou que também tinha tirado a camisinha com outras mulheres nos últimos tempos. Ou seja, estava vivendo uma "roleta russa" e expondo uma série de mulheres ao risco em nome de seu prazer. Os danos à saúde física e mental das vítimas podem ser irreversíveis. Está na hora disso mudar.

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