Topo

Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Marido de Ivete: privilegiados precisam repensar atitudes escravocratas

Daniel Cady em live com Regina Casé: marido de Ivete disse que pegou covid da emprega. Depois, pediu desculpas.  - Reprodução/Instagram
Daniel Cady em live com Regina Casé: marido de Ivete disse que pegou covid da emprega. Depois, pediu desculpas. Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista de Universa

12/04/2021 15h28

No fim de semana, o nutricionista Daniel Cady, marido de Ivete Sangalo, foi protagonista de mais um episódio que mostra como as classes abastadas brasileiras lidam com empregadas domésticas. Em uma live com a atriz Regina Casé, o nutricionista contou que ele, a esposa e o filho, tiveram coronavírus, mas com sintomas leves, e afirmou que eles foram contaminados por uma empregada. Essa declaração é um retrato do Brasil.

O Brasil é o país com mais empregadas domésticas no mundo. São mais de 6 milhões, e 92% delas são mulheres. A primeira vítima do Coronavírus do Rio de Janeiro foi uma empregada doméstica. Cleonice Gonçalves tinha 63 anos e foi contaminada depois que sua patroa voltou da Itália. A patroa não contou para ela que estava contaminada, segundo familiares.

Cleonice não foi a única vítima. A pandemia do coronavírus está colocando um holofote sobre as relações exploradoras e dependentes de patrões com empregadas domésticas e mostrando uma grande quantidade de absurdos e injustiças a que essas profissionais são submetidas.

"O covid chegou por uma funcionária, uma cozinheira", disse Daniel Cady e seguiu: "Então, assim, o que a gente pode fazer, a gente fez. Mas esse lance do funcionário passar uma semana aqui, folgar, enfim..." O tom com que ele disse que a empregada precisava folgar (como isso fosse uma chateação e não o direito de todo trabalhador) e o fato de ele ter colocado a culpa na empregada, em um momento em que o ideal seria dispensar o empregado, pagá-lo, e dar conta das tarefas domésticas, causou horror. Cady foi duramente criticado.

No dia seguinte, ele pediu desculpas. Disse que gostava muito da cozinheira, que eles teriam pago o médico e o exame dela (eles são tão ricos, não pagam plano de saúde para seus funcionários?) e pediu desculpas para a cozinheira e para quem "o entendeu mal". Cady disse também que a cozinheira foi "cancelada" por vizinhos.

Já repararam que essas funcionárias nunca têm nome? Quando Luciano Huck e família sofreram um acidente de avião, por exemplo, eles estavam com "duas babás" no avião, cujo nome nunca foi citado. E quem foi criticado (e não "cancelado") foi Daniel Cady. Parece que o nutricionista não entendeu as críticas.

Isso nem surpreende. As relações entre pessoas da classe média e da classe alta e empregadas domésticas são tão absurdas no Brasil que muitos nem enxergam o comportamento escravocrata que reproduzem. Continuam dizendo que "suas" empregadas (atenção para o pronome possessivo) são como se fossem da família. Apesar de não comerem na mesa junto com eles e, em muitos casos, usarem um uniforme.

Não existe país no mundo que tenha uma relação tão escravocrata com empregadas domésticas como o Brasil. Uma prova disso é que vez ou outra surge um escândalo desses, como alguém fazer uma declaração estilo a de Daniel Cady ou absurdos como dar uma festa de aniversário com tema inspirado em casa grande e senzala, estilo Donata Meirelles, que foi demitida da revista Vogue depois de sua festa de aniversário com temática escravocrata virar vexame até fora do Brasil.

Que horas ela volta?

Uma boa dica para enxergar a desumanidade que existe na relação patrão x empregado doméstico no Brasil é ver o filme "Que horas ela volta?", estrelado por ela mesma, Regina Casé. No filme, dirigido por Anna Muylaert, a atriz interpreta Val, uma empregada doméstica que "mora no serviço" e trabalha para uma família de classe alta em São Paulo. Ela cuida de todos, mas mora em um quartinho e sabe que, entrar na piscina da casa, por exemplo, não é para ela.

O filme fez sucesso fora do Brasil. Lembro que, depois de assistir ao filme na Alemanha, demorei para convencer amigos que a personagem Val era inspirada na realidade e que existiam milhares de empregadas domésticas que moram no serviço no Brasil. Essa realidade causa choque em países onde só pessoas milionárias têm empregadas (que são, obviamente, muito bem pagas).

Daniel Cady e aqueles que não entendem "o que tem de errado" em manter uma empregada durante uma pandemia e ainda culpá-la por "ter folga" podem aprender muito com a obra. E começar a repensar suas atitudes urgentemente.