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Nina Lemos

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Negação, banalização, luto: como você está lidando com as mortes da covid?

Brasil chega ao horror de 4 mil mortes diárias de covid-19 - Bruno Kelly/Reuters
Brasil chega ao horror de 4 mil mortes diárias de covid-19 Imagem: Bruno Kelly/Reuters

Colunista de Universa

08/04/2021 04h00

Na primeira fase da pandemia, ficamos chocados quando, em maio do ano passado, o Brasil registrou pela primeira vez um total de mais de mil mortos por coronavírus por dia. Com razão, afinal, eram mil pessoas, mil vidas, mil famílias destroçadas. Uma tragédia.

Mas esse ano as coisas pioraram mais rápido. Dia 10 de março, o país registrou pela primeira vez mais de 2 mil mortes em 24 horas. Duas semanas depois, um novo recorde: mais de 3 mil. Agora, chegamos ao horror de mais de 4 mil mortes diárias. Quatro mil cento e noventa e seis pessoas morreram de coronavírus na terça-feira.

E agora? Esse número vai continuar crescendo e, depois do choque inicial, vamos tocar nossas vidas como se isso não estivesse acontecendo? A impressão é de que todos nós, de alguma maneira, depois do choque inicial, acabamos normalizando o horror.

Será que fazemos isso por defesa, já que lidar com essa tragédia e o medo é quase insuportável?

O psicanalista Marcos Donizetti explica que sim, é possível que a gente "esqueça" para se defender.

"Toda vez que uma situação ou vivência for traumática ou difícil demais o sujeito recorre a determinados mecanismos de defesa, que são estratégias para manter tais conteúdos fora da consciência", diz. Esses mecanismos, segundo ele, podem ser a racionalização, "uma maneira de encontrar narrativas e teorias que justifiquem uma postura". Um exemplo: todo mundo conhece alguém que diz "ah, mas todo ano morre gente, ou "só morrem pessoas que já eram doentes" e outras teorias.

Outra maneira de lidar com o horror, segundo Donizetti, é a "repressão". "Essa é uma espécie de esquecimento do conteúdo traumático, algo bastante difícil neste momento, já que é difícil fingir que a pandemia não existe." A última maneira, de acordo com o psicanalista, é a completa negação. "Isso explica por exemplo os relatos de que mesmo os pacientes lutando pela vida nas UTIs ainda sejam resistentes a aceitar que estejam padecendo de covid", diz.

Segundo ele, no contexto atual do Brasil, existem outras razões que fazem com que muitas pessoas não levem a tragédia que vivemos a sério. E a principal delas é a postura do presidente Jair Bolsonaro.

"Quando Bolsonaro discursa contra a efetividade das vacinas ou a favor de soluções comprovadamente ineficazes para enfrentar a pandemia ele fornece combustível para que seus seguidores não só ignorem e minimizem as mortes como também neguem a gravidade da pandemia."

O psicanalista acredita também que existe um processo de desumanização das vítimas, que ele chama de "desumanização meritocrática".

"Os mortos não têm rosto e não têm histórias, são apenas números em planilhas, dos quais é fácil se distanciar. O 'meritocrático' surge como decorrência trágica e sustentação deste discurso, pois o sujeito não só acredita que não deve depender ou cobrar ajuda do estado, como também que de alguma forma há uma culpa inerente àqueles que não conseguiram, que não foram bons o bastante ou fortes o bastante ou que foram vítimas de alguma intencionalidade divina."

Mas é possível, de fato, ignorar uma tragédia dessas? Ou nossa tristeza, luto e medo diante de tantas mortes não faz a gente chorar, mas, por exemplo, faz com que a gente tenha pesadelos?

É possível sim ignorar a tragédia da pandemia. Até certo ponto, ao menos. Mas, se há algo que sabemos a respeito dos conteúdos recalcados é que eles retornam. Tudo o que deveria ter sido experiência e que não foi, que deveria ter sido elaborado e não foi, vai retornar como sintoma, inclusive no corpo." Marcos Donizetti, psicanalista

Viver o luto

O melhor a fazer, no momento em que mais de 4 mil pessoas morrem no nosso país por dia em decorrência do vírus é, segundo o psicanalista, viver o luto, se entristecer.

"É uma violência que nossos lutos não sejam vividos, que sejamos impedidos de velar nossos mortos. É impossível dizer agora dos efeitos que sofrerão os que ficarem, e é provável que tenhamos de vivenciá-los por décadas."

A dor, segundo ele, atinge também os negacionistas. "Quem zomba e nega a gravidade da pandemia possivelmente acordará dessa experiência quase delirante, ilusória e terá de lidar com as consequências de suas negações diante da tragédia, e será uma enorme ressaca. Minha sugestão aos que conseguem é não ignorar. Estamos perdendo pessoas queridas, estamos vivendo tempos de medo e angústia, e fingir que nada está acontecendo só vai prorrogar e aumentar nossas dores."

Para quem não consegue viver a dor, uma dica:

Quatro mil mortes pode parecer um número abstrato. Então, pense; isso equivale a explosão de 22 aviões comerciais em um mesmo dia. Lembra da tragédia do voo da Air France em 2009 quando 228 pessoas morreram quando um avião que fazia a rota Rio de Janeiro-Paris caiu? Ficamos muito passados. Pois 4 mil mortes equivalem a aproximadamente 18 aviões... Pois é, todo dia vivemos várias catástrofes.