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OPINIÃO

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Erveira do Cafundó resgata saberes medicinais na comunidade quilombola

Funcionária pública aposentada, Regina Pereira é a farmacêutica natural do antigo quilombo em Salto de Pirapora (SP)  - Acervo pessoal
Funcionária pública aposentada, Regina Pereira é a farmacêutica natural do antigo quilombo em Salto de Pirapora (SP) Imagem: Acervo pessoal

Colunista de Universa

18/04/2021 04h00

Com reportagem de Clarice Tatyer e edição de Ariane Silva, especial para o blog MULHERIAS

A funcionária pública Regina Pereira conheceu o Cafundó em 2003 numa visita, se apaixonou pelas tradições locais e por lá ficou. Acabou se casando com um morador e o quilombo que fica em Salto de Pirapora, a 144 km de São Paulo, virou sua casa. Hoje, com 61 anos e aposentada, a forasteira é responsável pela preservação da farmácia viva das erveiras, mulheres conhecedoras de plantas medicinais que há gerações cuidam da saúde e do meio ambiente das comunidades.

Nascida e criada na capital, Regina teve o primeiro contato com as ervas por meio da ex-sogra, que era erveira, após ter o primeiro dos três filhos aos 22 anos. "Foi assim que cheguei ao Cafundó e, ao conhecer a história do lugar, das matriarcas erveiras, do quanto sempre tiveram que lutar pela sobrevivência de suas famílias, me envolvi ainda mais", conta ela.

O conhecimento das plantas faz parte da história de resistência dos quilombos. As matriarcas da comunidade retiravam das matas o sustento e o remédio de que necessitavam. Trata-se das famosas 'panc' (plantas alimentícias não convencionais). É por isso que a comunidade hoje luta para preservar a riqueza destas tradições. No quilombo, o meio ambiente é casa, alimento, geração de renda, e também remédio.

Área comum do quilombo Cafundó , em Salto de Pirapora, no interior de SP - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
Área comum do quilombo Cafundó: vida comunitária e esperança
Imagem: Acervo pessoal

As "farmácias naturais", nome moderno dado ao saber ancestral das erveiras, guardam e transmitem a tradição dos chás, garrafadas e benzimentos ou benzeções que formam um caldo cultural que mistura fé religiosa e histórias populares, rezas cristãs e o jeito livre do povo que vive pelas vielas do Pará, de Minas ou das regiões metropolitanas.

Regina é uma de muitas guardiãs dessa cultura dos remanescentes de quilombos. Na batalha para ampliar a voz dos quilombolas, o resgate das tradições foi instrumento essencial para estimular nos jovens o apreço por suas identidades e nessa linha, o fortalecimento da autoestima e a criação de projetos de geração de renda alinhados com uma modernidade sustentável.

Cafundó em luta por reconhecimento

ervas do quilombo cafundó - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Alfavaca-cravo: com efeitos relaxantes, é muito utilizada para doces, chás e garrafadas.
Imagem: Acervo pessoal

Regina recebeu das mãos do ex-presidente Lula em 2009 o certificado de reconhecimento da comunidade como área de interesse social. Isso possibilitou o acesso ao crédito rural para que a comunidade se desenvolvesse. Mas até hoje o título da terra, que garante a propriedade do território herdado dos ancestrais e impede que a comunidade seja removida, ainda não saiu. Os agricultores recebem apoio do Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), da Secretaria da Justiça e Cidadania de São Paulo, com outras 36 comunidades paulistas.

Até 2003, ano que Regina chegou no Cafundó, só se falava no Quilombo dos Palmares. O reconhecimento de outras comunidades no Brasil se deu através do Decreto 4.887/03, que regula o direito territorial das populações remanescentes de quilombos.

A fé nas plantas que curam

A relação com a natureza também é espiritual. "As ervas são uma prática de fé por que se a pessoa não acredita ela não irá tomar", explica Regina. Os mais velhos da comunidade contam que quando tinham dor de cabeça na infância a Vó Efigênia, que era filha dos escravos que fundaram o Cafundó, pegava um raminho, fazia uma oração e mandava irem varrer o terreno. "A vassoura também era feita de um tipo de erva da cidade, e ela dizia que aquilo que não era apenas um trabalho, mas sim uma fé, e que faziam assim e o corpo curava".

quilombo cafundó - loja de artesanato e farmácia  - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
Quem vai buscar remédios com Regina encontra artesanato que ela também vende na lojinha dentro de sua casa
Imagem: Acervo pessoal

Manter a tradição das ervas requer um trabalho dedicado de resgate da memória quilombola. Entre as ervas naturais cultivadas no Cafundó, Regina cita a alfavaca-cravo, planta calmante que também ajuda no desconforto provocado pelas cólicas menstruais. "Essa erva serve para tudo. As parteiras utilizavam antigamente para garrafada logo após o parto, para limpar o útero da parturiente. Tinham várias ervas na garrafada , mas essa era a principal", explica.

Hoje a alfavaca é usada para tempero, xarope ou "concertada" na forma de um licor - quando as parteiras faziam para as mulheres no parto, os homens acrescentavam a pinga, ou seja, de um remédio surgiu uma bebida alcoólica. A alfavaca é usada também como refresco, já que a comunidade não toma refrigerante.

No Cafundó tem também a ora-pro-nóbis, folha conhecida na culinária mineira, rica em proteína e vitaminas, que tem propriedades antioxidantes e anti-inflamatórias. Dona Regina recomenda muito a cúrmuma, que é usada como tempero e também tem ação anti-inflamatória, e a moringa, que tem efeitos analgésicos e cicatrizantes.

A árvore de moringa do Cafundó alivia dores e ajuda a curar machucados. - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
Árvore de moringa do cafundó; suas folhas aliviam dores e ajudam a curar machucados
Imagem: Acervo pessoal

Em vários casos, são plantas que a própria indústria farmacêutica tem descoberto e comercializado na forma de cápsulas de medicamentos fitoterápicos, mas que no quilombo são utilizadas em sua forma integral, não industrializada, vinda direto do solo.

Regina conta que as ervas curam até a alma, mas esse segredo permanece na comunidade: "Antigamente as mulheres e os antigos não passavam estas informações. Até hoje tem que se aproximar muito para deter esse conhecimento. É uma questão religiosa, de benzimento."

A luta por reconhecimento do saber das plantas deu frutos

quilombo cafundó - Acervo pessoal  - Acervo pessoal
É difícil de encontrar nas lojas, mas no Cafundó tem boneca negra, feita de capim de milho
Imagem: Acervo pessoal

A OMS (Organização Mundial de Saúde) oficializou em 1978 o uso de medicamentos fitoterápicos, que são os feitos a partir de plantas, para fins profiláticos, curativos e paliativos. No Brasil, o reconhecimento veio em 2006, com a instituição pelo governo federal da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (Sistema Único de Saúde), que criou uma plataforma de acesso ao conhecimento das plantas medicinais brasileiras. Mas é a luta feita em cada território, como no Cafundó, que dá corpo a essa política na forma das farmácias vivas.

Regina conta que alguns territórios já são reconhecidos na questão dos ervários, mas a luta ainda está em andamento para a comunidade do Cafundó: "Aqui na nossa cidade não conseguimos implementar por que esse trabalho tem que ser desenvolvido junto ao governo municipal. No ano passado não conseguimos porque foi ano eleitoral, mas acreditamos que vamos conseguir oficializar".