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Como a "estratégia de quilombo" pode salvar negócios e garantir empregos

Colunista do UOL

25/09/2020 04h00

Com reportagem de Juliana Martins, especial para o blog MULHERIAS

Jaciana da PopAfro - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Jaciana Melquiades, da marca de bonecas Era uma vez no mundo, é uma das oito empresas que compõem o acervo da loja colaborativa PopAfro, do Madureira Shopping (RJ): a partilha de ideias, gestão coletiva do negócio e das redes digitais e fortalecimento sem competição foram saídas para manter as marcas e o emprego de cerca de 50 colaboradores envolvidos. Na lógica ancestral do "Ubuntu", termo que significa "eu sou porque nós somos", quando um sobe puxa o outro. Entenda na prática!
Imagem: Acervo pessoal

Três meses depois de inaugurar uma loja colaborativa num shopping, eles tiveram que se reinventar. "A pandemia chegou e nós, oito pequenas marcas de empreendedores negros, nos vimos diante de um desafio imenso: nos sustentar, pagar investimentos e funcionários e ainda evitar o corte dos cerca de 50 colaboradores indiretos que estão conosco", conta Jaciana Melquiades, de 36 anos, da marca de brinquedos afrocentrados Era uma vez o mundo, que produz bonecas negras. "Apenas 7% desse mercado dá conta da nossa ascendência africana", completa a empresária, ciente de sua missão.

Visibilidade negra e afroempreendedorismo, sim, são mais que negócio na loja colaborativa Pop Afro ,que fica no Madureira Shopping, no subúrbio da cidade do Rio de Janeiro. Além das lindas bonecas, há também roupas que reconfiguram as tradicionais capulanas africanas, acessórios de moda que remetem aos orixás, objetos de decoração e cadernos escolares que reafirmam a beleza do cabelo black e até produtos relacionados a uma festa de público afro da cidade. Tudo feito por pessoas pretas com intenção de valorizar as raízes negras do Brasil.

Loja PopAfro no Shopping Madureira no RJ - Reprodução Instagram - Reprodução Instagram
Empreendedores da loja PopAfro, um quilombo no shopping: preocupação com evitar demissões, participação conjunta de editais para afroempreendedores, nova divisão de tarefas na loja e compartilhamento de sucesso sem pensar em concorrência: estratégias ancestrais para fortalecimento de todas as oito marcas
Imagem: Reprodução Instagram

Assim como os quilombos se constituíram como territórios de resistência e economia solidária, a PopAfro é um guarda-chuva de iniciativas sem competição, com partilha de redes de contatos, saberes e trabalho coletivo. A ideia de quilombo urbano foi colocada à prova nesta pandemia e os empreendedores decidiram que as marcas mais lucrativas iriam amparar as menos rentáveis.

"Foi um esforço coletivo montar o nosso espaço. E o que nos une é, justamente, é a importância de falar da nossa identidade e a troca de saberes em rede que, sabemos, já é algo ancestral por si só", pontua Drayson Menezes, de 29 anos, estilista e proprietário da grife @Galo Solto, que inova o mercado da moda com suas saias masculinas e roupas sem gênero. A ancestralidade e a modernidade, de fato, fazem parte da filosofia dos negócios do grupo.

saias masculinas PopAfro  - Divulgação  - Divulgação
Drayson (à dir.) e Orlando Caldeira, criadores da marca Galo Solto, de roupas sem gênero e saias masculinas. "A loja é um aquilombamento em si e na pandemia exercitamos a troca de saberes mais do que nunca. A Jaciana foi para a parte administrativa, eu para o marketing e todos juntos fizemos a loja online", conta Drayson
Imagem: Divulgação

Em conjunto, todos negociaram os aluguéis e pensaram em saídas alternativas. Entre elas, estava a necessidade de contemplar a especificidade das donas da marca Axante Presentes, que são portadoras de Lupus, doença autoimune que as coloca no grupo de risco da Covid-19. Criadoras de estampas com personagens que exaltam as raízes e a beleza empoderada das mulheres negras em diferentes objetos, elas passaram a cuidar do atendimento virtual dos clientes e divulgação da loja coletiva.

Fabiola e Fabiana da marca Axante da loja PopAfro  - Divulgação  - Divulgação
"Somos do grupo de risco, temos Lupus, e fomos obrigadas a parar totalmente as atividades presenciais", diz a empresária Fabíola Delfino, de 41 anos, que toca o negócio com sua irmã Fabiana, de 43. "Sem esse esforço conjunto, não conseguiríamos estar hoje com o ponto de venda"
Imagem: Divulgação

Ao longo dos meses de confinamento, a loja PopAfro criou a campanha "Estamos juntos à distância" para conscientizar seus cerca de 50 colaboradores. Houve remanejamento de funções, acordos salariais e orientação para a criação de MEI para pagamento por nota fiscal em alguns casos.

Ligia Parreira, de 38 anos, criadora e criativa da grife de roupas Devassas.com, conta que não demitiu ninguém, mas renegociou pro-labores. "A melhor estratégia foi reduzir a carga horária de prestadores de serviços e começar a colocar mais a mão na massa em processos que eu terceirizava". O processo de digital da empresa, que vinha sendo protelado, foi acelerado, assim como o serviço delivery.

Ligia da PopAfro  - Divulgação  - Divulgação
"Em tempos que todo o mundo falava de #blacklivesmatter, expliquei todo o processo do meu negócio e lembrei para todes, que empreendimentos pretos garantem vidas pretas. Não me limitei à comunidade negra, mas a todes interessados nessa pauta."
Imagem: Divulgação

Na estratégia coletiva, algumas marcas participaram de editais de financiamento voltados para afroempreendedores e conseguiram aportes para os custos fixos. Outras esticaram as reservas para garantir pagamentos e criar a venda on-line enquanto a loja física seguia fechada a partir de março.

Marlon Diniz, de 33 anos, da marca de roupas e acessórios Yolo Love & Co conta que manteve todos os seus funcionários. "Alguns remanejamos funções ou atribuições. Os vendedores, por exemplo, vendedores passaram a trabalhar home office em vendas online".

Já a estilista e modelista Andrea Villas Boas, de 44 anos, dona da marca VB Atelier, conta que aprendeu a empreender a partir da escassez. "Como nossos ancestrais, passei a criar metas possíveis e recomeçar com o material que eu tinha em casa". Ela usou seus tecidos africanos para criar máscaras com para uma campanha que movimentou pessoas de todo o Brasil em prol da manutenção e cuidado do povo negro.

PopAfro - Andrea Villas Boas, de 44 anos, dona da marca  VB Atelier: - Divulgação  - Divulgação
Na loja PopAfro - A estilista e modelista Andrea Villas Boas, de 44 anos, dona da marca VB Atelier: "aproveitando o que tem, como nossos ancestais"
Imagem: Divulgação

A venda de máscaras com tecidos coloridos na loja colaborativa da PopAfro do Instagram fortaleceu outra empreendedora da loja, Maria Adelaide, de 42 anos, o Atelier Maclade. "Uma cliente que me fez pensar muito sobre os tecidos quando disse que se sentia invadida usando máscara porque se lembrava dos escravos, da Anastácia", lembra. "Mas ficava mais confortável ao usar as coloridas porque tiravam um pouco desse peso, né?, dessa lembrança da escravidão", conta Adelaide, feliz por dar conforto e alívio à cliente.

Abaixo, Adelaide mostra a colaborativa que está sendo reaberta com todos os cuidados. Os donas das marcas estão se revezando com os vendedores no atendimento presencial:

Além desse canal de vendas, houve empreendedores que participaram de feiras afro, como a Black Market. Ações como essa tem a intenção de fazer o dinheiro circular a partir dos conceitos do chamado Black Money. Ou seja, uma proposta de consumo que defende a escolha de produtos ou serviços de pessoas pretas para fazer o dinheiro rodar entre afroempreendedores e a comunidade negra. A Devassas também passou a fazer parte da loja do movimento no Brasil.

Devassa para PopAfro - Divulgação  - Divulgação
Camisetão da marca Devassa na loja coletiva: fortalecimento dos negócios e da autoestima
Imagem: Divulgação

"Agora estamos pensando em estratégias para potencializar vendas, realizar promoções para vendas conjuntas entre produtos que têm maior projeção nas mídias sociais ao lado dos que têm menor visibilidade", revela Jaciana, das bonecas.

A estratégia é generosa. Jaciana vai compartilhar com os colegas a visibilidade que ganhou quando um post seu viralizou e salvou seu negócio. Há cerca de um mês e meio, ela compartilhou um tread do Twitter assumindo seu desespero quando o dinheiro acabou. "Uma blogueira replicou meu apelo e isso fez com que eu recebesse, de repente, mais de mil encomendas de bonecas. Foi incrível ver a comunidade afro me amparando", conta a empreendedora.

O termo "Ubuntu", traduzido como "eu sou pq nós somos", é lema de todos os envolvidos no negócio. "A ideia é um subir e puxar o outro mesmo. Cada um tem um talento, uma expertise. Termos os mesmos sonhos e as mesmas dores nos tira da ótica individual e nos colocam como um só organismo", explica Ligia. "E só juntos podemos estar em lugares de destaque, relevância e com força para hackearmos o sistema, que é ainda excludente que diminui nossas narrativas e espelhos."