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Marina Rossi

REPORTAGEM

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'Fui chamada para um date, mas chegando no almoço a cozinheira era eu'

Uma das histórias recebidas para o livro "Boy Dodói" e ilustrada por Helô D"Angelo - Helô D"Angelo
Uma das histórias recebidas para o livro "Boy Dodói" e ilustrada por Helô D'Angelo Imagem: Helô D'Angelo

Colunista de Universa

23/06/2023 04h00

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Somente nesta semana que passou, um homem foi aplaudido depois de dizer publicamente que traiu a mulher grávida, outro, acusado de estupro, afirmou que "perdoa" a vítima, e um terceiro planejava negar a acusação de estupro alegando disfunção erétil. Os jogadores Neymar e Daniel Alves, e o ex-jogador Robinho, respectivamente, estiveram no centro do noticiário não por seus feitos em campo, mas pelo (mau) comportamento fora dele.

As histórias são diferentes, e não se compara uma traição a um estupro, mas todas levam a um mesmo lugar, o da masculinidade tóxica. Os exemplos acima mencionados são mais escancarados, mas há uma série de comportamentos tóxicos masculinos no dia a dia. Por exemplo: Imagine ser convidada para um almoço na casa de um cara com quem você está saindo. Ao chegar lá, você descobre que, na verdade, o plano dele é que você faça o almoço.

Essa história é real e serviu de inspiração para o quadrinho desta coluna, feito pela quadrinista e artista Helô D'Angelo com exclusividade para a coluna. E, de onde saiu essa tirinha, sairá muito mais. Helô é coeditora juntamente com Bebel Abreu e Carol Ito do livro "Boy dodói, histórias ilustradas da masculinidade tóxica". Com previsão de lançamento para setembro pela Bebel Books e projeto gráfico da Mandacaru, o livro trará onze histórias contadas por mulheres e ilustradas por onze artistas. Todas pautadas pela masculinidade tóxica.

"Tem que literalmente desenhar para essa galera entender que esse comportamento está muito errado", diz Bebel. As histórias são um pequeno fragmento de um vasto material recebido pelas editoras nos últimos meses. O pontapé foi a publicação de um chamado nas redes sociais por histórias que contribuíssem para a reflexão sobre "boys que ficaram dodóis por conta do machismo e da masculinidade tóxica". "No primeiro dia recebemos mais de 200 histórias", conta Bebel Abreu, coeditora. "Até nos assustamos e paramos de divulgar o chamado porque ficamos com medo de ficar grande demais", explica a co-editora. "Isso nos mostrou o quanto precisamos de uma escuta". No total, foram enviadas 307 histórias.

Carol Ito, quadrinista, jornalista e coeditora, conta que a ideia era selecionar uma mistura de assuntos, mas durante a leitura das histórias elas acabaram identificando padrões. Por isso, criaram algumas categorias —dentre elas, a "autoestima da porra", que, de acordo com Carol, é "autoexplicativa". "Tem também a categoria 'vampiro da autoestima', que é aquele cara que não pode ver a mulher conquistar nada, e tem 'a culpa é das estrelas', que é o homem que sempre coloca a culpa na mulher de tudo o que acontece de ruim com ele", explica ela. Os casos de gordofobia, relacionamento abusivo e manipulação também foram contemplados. E não poderia faltar o clássico ghosting, quando o cara simplesmente some da relação sem dar nenhuma explicação.

"Psicofobia"

As editoras contam que apesar do nome do livro fazer uma brincadeira com doença, elas fugiram de histórias que pudessem ser consequência de distúrbios psicológicos. "A gente não quis alimentar a psicofobia", conta Carol. "E vieram muitas histórias maníacas e absurdas nesse sentido e que não foram selecionadas. Buscamos escolher casos mais recorrentes". Bebel completa: "O título pode ser uma pegadinha, e por isso explicamos na linha fina que são histórias ilustradas sobre masculinidade tóxica. Não é um livro sobre psicofobia".

Essa preocupação em não alimentar o preconceito ou a discriminação contra pessoas com transtornos psicológicos trouxe para a produção do livro a consultoria de um psiquiatra, que, segundo Bebel, tem total poder de veto. "Se ele achar que é uma história que pode ser um gatilho, não vamos publicar", explica.

Seguindo esses critérios, as mais de 300 histórias foram divididas entre as coeditoras, que selecionaram 15 cada uma. Juntas, elas escolheram as onze finais, que estão sendo ilustradas por onze artistas. Para ser viabilizado, o projeto terá financiamento coletivo.

O livro ainda está em processo de produção, mas as editoras contam que as histórias, apesar de algumas muito pesadas, já eram um pouco do que elas esperavam. "Não fiquei surpresa com as histórias que recebemos", diz Helô. "Desapontada sim, mas não surpresa". Ela afirma ter ficado triste por constatar que os problemas são sempre os mesmos, independentemente da idade ou da região, já que elas receberam trabalhos de todo o país. "Me deu um desânimo, mas ao mesmo tempo uma esperança", diz a co-editora.

A expectativa delas é que o livro sirva de ponto de partida para alguma reflexão masculina. "A ideia é que essas mulheres entendam que não estão sozinhas. E que os homens cis [cisgênero, ou seja, aquele que se identifica com o sexo que lhe foi designado ao nascer] leiam e sintam vergonha, sem cancelamento, mas percebam o que eles fazem, que as histórias que eles contam rindo no bar com os amigos não são legais".

"Para além da descontração e do deboche, a gente quer cutucar os padrões de masculinidade tóxica", diz Carol. "Queremos dizer que aquilo que o 'boy dodói' faz também dói na gente e que não dá para continuar com esses comportamentos sem nenhuma responsabilidade afetiva".