Marina Rossi

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Reportagem

Após crianças com câncer, autistas ficam sem tratamento pela Unimed

Foi no balcão de atendimento de um hospital que a empresária Janaína Kafer, 34, soube que não tinha mais plano de saúde. "Precisei ir a um pronto-socorro e foi lá que recebi a negativa. Quando fui olhar no aplicativo da operadora, vi que meu plano havia sido excluído", conta. "Entrei em choque. Saí de lá pior do que eu estava, chorando, e sem ser atendida".

O plano de saúde de Janaína era da Unimed e havia sido contratado em julho de 2020 para ela e o filho, Arthur, 4, diagnosticado com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). "O tratamento do meu filho ocorria graças ao plano de saúde", conta ela. Mas no início de junho deste ano, sem receber nenhum informativo ou explicação, mãe e filho deixaram de ser beneficiários, mesmo tendo quitado religiosamente com as mensalidades. Para piorar, desde então, a empresária afirma que já recebeu dois boletos de cobrança por um serviço que não tem mais.

Arthur acabou ficando dois meses sem tratamento, já que, para pagar as terapias que ele fazia na clinica credenciada, a família teria que desembolsar mais de R$ 2.700, valor superior ao da mensalidade do plano de saúde. Por isso Janaína teve de ir à Justiça para pedir pelo restabelecimento do plano do filho.

Na semana passada, ela fez uma consulta rápida ao site da Unimed e descobriu que o plano de Arthur havia sido reativado no dia 6 de julho. "Tenho vários protocolos de ligações que fiz à Unimed e ninguém sabe me informar sobre nada. Agora descobri sozinha que o plano está ativo há um mês. Não recebi nenhuma ligação, e-mail, nada", conta. Ela, no entanto, segue sem plano de saúde e sem explicação.

O caso de Janaína não é isolado. Ela se junta às mais de 200 famílias usuárias de planos de saúde de diferentes operadoras que passaram por algo parecido nos últimos meses. O número foi contabilizado pelo gabinete da deputada estadual Andréa Werner (PSB), presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), que recebeu as denúncias. Do total, mais de 120 são só de usuários da Unimed. Boa parte envolvem crianças com câncer e diferentes deficiências.

A funcionária pública Marilene Ribeiro Barbosa, 43, faz parte desses números. O filho, Leonardo, de 9 anos, estava se recuperando da terceira cirurgia na cabeça para o tratamento de um craniofaringioma, um tipo raro de tumor no crânio, quando a família recebeu a negativa da Unimed para a continuidade do tratamento, conforme informou reportagem do UOL. "O Leo estava na UTI ainda quando recebemos a notícia de que o convênio não cobriria os custos da radioterapia", conta a mãe. "Ficamos desesperados, pois as sessões devem ser feitas dentro de um determinado prazo, para que o tumor não volte". A família conseguiu garantir as sessões de radioterapia por meio de uma liminar. No entanto, em seguida, veio a carta de rescisão.

Na carta enviada à família, a Unimed oferecia tratamento na Bahia, apesar deles viverem na zona oeste de São Paulo. Com medo de ficarem descobertos em um momento tão delicado de recuperação do filho, Marilene e o marido mudaram de plano de saúde, passando a pagar 20% a mais. Por fim, a família ainda recebeu uma cobrança do hospital onde Leonardo realizou a cirurgia —enquanto o plano de saúde ainda estava em vigor— no valor de quase R$ 60 mil e entrou em desespero.

O advogado Marcos Patullo, especialista em direito à saúde do Vilhena Silva Advogados, afirma que cortes assim são comuns, especialmente em planos coletivos e com poucas vidas. "Esses planos são tratados de uma forma distinta dos individuais, que, esses sim, só podem ser rescindidos em caso de inadimplência ou fraude", explica. "Ocorre que, como quase não temos mais a modalidade individual no mercado, muitas pessoas recorrem ao uso do CNPJ para fazer um plano familiar, porque não há outra opção". Ele classifica esses casos como "planos familiares disfarçados de coletivos", o que não é ilegal. Pelo contrário, as normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) preveem esse tipo de contratação.

Patullo explica que, diferentemente de uma grande empresa, que tem muitos funcionários e um poder maior de negociação com as operadoras, esses planos considerados familiares acabam por deixar as famílias mais desamparadas quando os contratos são rescindidos por parte das operadoras. "O caso da Janaína, que nem sequer recebeu um aviso sobre a rescisão, é abusivo. O mínimo que a operadora deve fazer é comunicar".

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De acordo com nota enviada à coluna pela ANS, no caso desses os planos coletivos, como o das famílias de Janaína e Marilene, existem duas situações relacionadas à rescisão. A primeira é a exclusão de um único beneficiário, que só pode ocorrer "em caso de fraude ou perda de vínculo com a pessoa jurídica contratante, se estiver previsto em contrato". A outra situação é a rescisão do contrato todo, com todos os beneficiários. Neste caso, a ANS afirma que "após o prazo de vigência do contrato coletivo, a rescisão contratual imotivada pode ocorrer, devendo sempre ser precedida de notificação". A operadora deve também apresentar as razões para a rescisão.

Diante da quantidade de famílias que ficaram descobertas pelas operadoras, a Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência realizou, no final de junho, uma audiência com representantes da Unimed. Na ocasião, foram expostos os quase 100 casos que até então o gabinete de Andrea Werner havia recebido. A Unimed afirmou, por meio de nota à coluna, que se comprometeu a analisar os casos, mas que "até o momento, não recebeu a lista com os 87 nomes prometidas pela Comissão".

Todos os casos, no entanto, estão listados no inquérito civil aberto pelo Ministério Público de São Paulo para apurar essas interrupções por parte da Unimed. Questionada, a Unimed, que é parte no processo, afirmou, também via assessoria, que "não recebeu a relação de casos pelo MP".

Interrupção do tratamento

No ano passado, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) estabeleceu que as operadoras que rescindirem os contratos unilateralmente devem garantir a continuidade do tratamento do usuário internado ou com doença grave, até a efetiva alta, contanto que as mensalidades estejam quitadas. As regras da ANS reforçam esse entendimento, já que a autarquia lembra que os procedimentos autorizados na vigência dos contratos devem ser cobertos pela operadora, já que foram solicitados quando o plano ainda estava ativo.

Já a Unimed afirmou, por meio de nota, que "cumpre rigorosamente a legislação e as normas que regem os planos de saúde. Os encerramentos mencionados se referem exclusivamente a alguns contratos que integram carteiras de planos de pessoa jurídica, sem que houvesse qualquer intuito discriminatório". A cooperativa também afirmou que nos casos em que foram evidenciados "tratamentos críticos em andamento", ela tem dialogado com as empresas a melhor forma de condução dos casos. E lembrou que são as empresas as responsáveis pela contratação do plano de saúde de seus funcionários.

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A cooperativa não mencionou os casos de planos empresariais individuais, como o de Janaína e Marilene, justamente os mais desprotegidos, como já explicou o advogado Marcos Patullo. "Essa é uma das grandes falhas regulamentares no mercado: as rescisões unilaterais dos planos coletivos, além do reajuste abusivo".

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