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Marina Rossi

REPORTAGEM

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Em 'cartilha comportamental', Alesp usa 'paquera' para relativizar assédio

Prédio da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo - Divulgação
Prédio da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo Imagem: Divulgação

Colunista de Universa

09/06/2023 04h00

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Circula pelos gabinetes das deputadas e deputados estaduais de São Paulo uma "cartilha comportamental". Elaborada pela Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o documento, ao qual a coluna teve acesso com exclusividade, prevê a "prevenção e enfrentamento do assédio moral, assédio sexual e discriminação".

No entanto, a cartilha relativiza o assédio sexual, ao tentar diferenciá-lo da "paquera". "Qual a melhor forma de diferenciar o assédio da paquera? Podemos partir da seguinte premissa: a paquera não causa medo e não causa repulsa", diz o texto elaborado para consumo interno dos parlamentares e servidores da casa. "Lembrando sempre o que é importante. Não é não".

Para a advogada Marina Ganzarolli, presidente e fundadora do movimento #MeToo no Brasil, a cartilha é problemática em diversos aspectos. A começar pela autoria do documento. "Quem redigiu esse documento? Provavelmente os próprios servidores, que não são especialistas em políticas discriminatórias e compliance", diz. "Não há uma consultoria técnica responsável pela elaboração do documento".

E isso, segundo ela, se reflete no conteúdo. "Não necessariamente o assédio envolve medo e repulsa. Pode haver revolta, constrangimento, descontentamento", diz. "A definição de assédio é quando há conotação sexual e não há consentimento", afirma. "Mais importante que o 'não é não', é dizer que o silêncio não significa sim, assim como a ausência de um grito de não também não é um sim".

A coluna apurou que em um primeiro momento a cartilha foi enviada somente às deputadas mulheres, algo que causou estranhamento. Além disso, o documento teria sido elaborado após a denúncia feita pela deputada Thainara Faria (PT), que disse ter sido vítima de racismo dentro da Alesp.

No dia 31 de março, Thainara, que é uma mulher negra, foi impedida de registrar sua presença por uma servidora da Assembleia, que argumentou ser uma atividade restrita aos deputados da casa. Na época, a equipe da deputada afirmou, por meio de nota, que pedirá a abertura de uma sindicância para apurar o caso. Procurada, ela afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não conseguiria falar com a coluna por falta de agenda.

O racismo sofrido pela deputada Thainara dentro da Alesp não está isolado. Na lista das investidas contra as mulheres ocorridas na Assembleia Legislativa de São Paulo, talvez um dos casos mais emblemáticos seja o que envolve a ex-deputada Isa Penna (PCdoB). Em 2020, Isa foi apalpada pelo deputado, na época do Cidadania, Fernando Cury, durante a votação do orçamento do estado para 2021. As câmeras do plenário flagraram o momento em que Fernando Cury passa a mão no seio de Isa e dá um abraço por trás nela.

Na época, o deputado foi suspenso por seis meses, algo inédito na Alesp, e expulso de seu partido, o Cidadania. Tornou-se réu por importunação sexual e hoje é filiado ao União Brasil. A coluna não conseguiu contato com o ex-deputado. Até o fechamento desta reportagem, Isa Penna não havia respondido às perguntas enviadas pela coluna.

A assessoria de imprensa da Alesp informou à coluna que a cartilha "ainda está em produção" e que, em um primeiro momento, as parlamentares mulheres foram ouvidas, mas o processo de produção do documento "está envolvendo vários parlamentares".

Para a advogada Marina Ganzarolli, houve uma "boa intenção" dos servidores que escreveram a cartilha, mas é preciso que especialistas no assunto sejam consultados e participem da elaboração do documento. Mais do que orientações sobre o que é ou não assédio, é preciso que se criem canais de denúncias próprios da Alesp, e, especialmente, formas de acolhimento das vítimas. "As empresas públicas estão anos-luz atrás das companhias privadas nessa matéria de ESG [sigla em inglês para sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa] e inclusão. É preciso que o tema seja levado a sério no setor público também".