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Isabela Del Monde

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Deputados torram dinheiro para espalhar fake news contra trans em audiência

Colunista de Universa

23/06/2023 04h00

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A Comissão de Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados promoveu uma audiência pública na quarta-feira (21) para debater o tratamento para crianças e adolescentes transsexuais. Foi organizada pela deputada federal Franciane Bayer (Republicanos-RS) e contou com uma lista de palestrantes que se colocaram contra a existência de pessoas trans e travestis —entre eles estavam profissionais da saúde negacionistas e antivacina.

Na audiência, a transsexualidade foi tratada como epidemia e doença, contrariando a Organização Mundial de Saúde que, desde 2018, ainda que tardiamente, não considera mais essa identidade de gênero como uma disfunção mental. E, lembrando, essa conversa toda foi bancada com o nosso dinheiro.

Mas a deputada Franciane Bayer e seus colegas transfóbicos certamente não contavam com a presença genial da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP). Em uma fala de aproximadamente quatro minutos, Hilton expôs, em primeira pessoa, a brutalidade e a violência que impera contra as crianças e adolescentes trans e travestis e nos lembrou que o Brasil é o país que mais mata essa população. O objetivo não é proteger as crianças? Então por que não se luta em favor da integridade física e psíquica de crianças trans?

Em janeiro de 2021, a prefeitura de São Paulo publicou o relatório do "Mapeamento das Pessoas Trans do Município de São Paulo". Esse estudo trouxe uma série de informações fundamentais mas quero aqui destacar o recorte de idade, já que esse era o tema de discussão da audiência ou, como chamou Hilton, da patacoada promovida com dinheiro público.

O primeiro dado diz respeito à idade em que a pessoa trans deixou de se identificar com o sexo biológico. Para 46% das travestis, isso aconteceu entre 11 e 15 anos de idade. Na mesma faixa etária, se encontram 36% das mulheres trans e 30% dos homens trans. Ou seja, é na pré-adolescência e início da adolescência que a maioria das pessoas trans e travestis se reconhece como tal, e esses são dados que não podem ser negados. Essas pessoas existem e, como cidadãs brasileiras, fazem parte do pacto de direitos e deveres de nossa democracia.

Importante destacar que o Conselho Federal de Medicina, como muito bem apontou Hilton em sua fala —que você pode assistir na íntegra nas redes sociais da deputada— proíbe a terapia hormonal de transição de gênero em pessoas menores de 16 anos, bem como veta a operação de redesignação sexual em pessoas menores de 18 anos. Ou seja, crianças trans não estão sendo medicadas nem operadas. Muito pelo contrário, estão sendo abandonadas e violentadas. Lembrando que, para se reconhecer como trans, não é preciso passar pela hormonização nem fazer cirurgia. A identificação vem antes disso.

E agora entramos no segundo dado: entre as travestis da cidade de São Paulo, 37% delas foram expulsas de casa por suas famílias com menos de 15 anos, e 42% delas passaram por isso entre 16 e 20 anos. Entre a população total de pessoas trans, travestis e não binárias de São Paulo, 49% delas foram rejeitadas pela família na adolescência.

Te convido, pessoa cisgênero, assim como eu, a uma reflexão: como seria sua vida se seus pais tivessem te expulsado de casa com 13 ou 14 anos? Eu, certamente, não teria ingressado no ensino médio, não teria feito faculdade de direito, não teria uma carreira consolidada como tenho hoje. Você considera justo que crianças tenham seus sonhos destruídos, que sejam jogadas à prostituição sem escolha, apenas por serem quem são? Como uma criança sobrevive e se desenvolve plenamente sem cuidado, sem casa, sem escola, sem assistência médica?

Definitivamente, não são as pessoas trans e travestis que estão colocando nossas crianças em risco. São os homens cis. Ou não já nos esquecemos dos dados que todos os anos apontam que as crianças são as principais vítimas de violência sexual cometidas por homens, como apontou Erika Hilton?

Essa frente no Congresso faz uso criminoso da pauta de defesa à infância para esconder suas verdadeiras intenções de perseguição à existência das pessoas trans.

Da mesma forma que a ciência foi usada, no século 19, por pessoas brancas para dar justificativas para o racismo contra as pessoas negras, Hilton nos alerta que é exatamente a mesma coisa que está acontecendo em 2023 contra pessoas trans e travestis. E é inimaginável, para mim, as dores que Erika e Duda Salabert, também deputada federal pelo PDT-MG, estão sentindo nesse momento ao serem expostas a crimes de transfobia em seu próprio ambiente de trabalho.

A dignidade dessas duas congressistas deve nos inspirar e nos orientar a sermos aliadas de todas as pessoas trans e travestis, especialmente das crianças e adolescentes cujas vidas estão sendo exploradas pelos transfóbicos que não têm nenhuma preocupação em cuidar delas, pois se tivessem se preocupariam com a expulsão dos lares, com a evasão escolar, com a exploração sexual e com os assassinatos dos quais essas crianças e adolescentes são vítimas.

Declaro toda a minha admiração, solidariedade e aliança incondicional para Erika Hilton, candidata na qual eu votei e que honra diariamente todos os votos que recebeu e que está se consolidando com um nome histórico da política e da democracia brasileira.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado, a deputada federal Duda Salabert é filiado ao PDT, não ao PSOL.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL