O que aprendemos com o julgamento de Daniel Alves
Recheado de argumentos tão toscos quanto "ele tinha bebido demais e não conseguia discernir" e "ela estava sensualizando", o julgamento do jogador multimilionário Daniel Alves, acusado de estuprar uma garota quase 20 anos mais nova, pode nos oferecer alguns ensinamentos:
- Sem um protocolo adequado de atendimento, a tendência da vítima é não denunciar -- e, pior, nem receber o tratamento de saúde e policial adequados para evitar doenças ou gravidez e saber quais são os seus direitos. Mais de uma testemunha do acontecido na boate Sutton, em Barcelona, corroborou a versão de que a vítima não queria denunciar para que não soubessem a sua identidade e não a humilhassem dizendo que queria se aproveitar do famoso.
- Não importa o quanto a mulher tente se proteger: ela sempre estará sob o risco de ter o seu nome exposto e a sua versão, questionada publicamente. No caso Daniel Alves, foi a família dele a responsável por isso -- até agora, impunemente. A descredibilização da vítima deve pesar contra ele no tribunal.
- As provas colhidas graças ao protocolo de atendimento em vigor na Espanha foram fundamentais para esclarecer o caso. Daniel Alves ficou encurralado, e cada uma de suas cinco versões teve as contradições e mentiras expostas graças a vídeos, exames e testemunhos de médicos e seguranças.
- Tudo muda nesse tipo de ocorrência quando a própria boate não está disposta a "retribuir" o dinheiro gasto ali com cumplicidade. No Brasil, já tivemos casos muito parecidos com o acontecido em Barcelona em dezembro de 2022, e a vítima acabou humilhada no tribunal e o seu algoz, absolvido. Imagens de câmeras de segurança desaparecem ou demoram a ser entregues à polícia, a mulher fica sozinha na rua chamando um Uber aos prantos, e funcionários parecem dispostos a prontamente ter amnésia.
- A estratégia dos acusados de convidar advogadas mulheres para defendê-los já não está colando mais -- experiente, a criminalista que defendeu Daniel Alves meteu os pés pelas mãos, com argumentos como "nenhum ferimento foi encontrado em sua genitália interna ou externa. Isso confirma que a relação sexual foi consensual".
- Cara Inés Guardiola, sinto muito você ter tido que apelar a esse argumento, um desserviço disfarçado de legítimo direito de defesa. Toda mulher sabe que isso é mentira. As lesões mais graves da violência sexual em geral são invisíveis -- e eternas. A própria lei diz que todo ato libidinoso sem consentimento é uma agressão. Daniel Alves, aliás, tocou sem consentimento também a prima da vítima, segundo ela contou no tribunal. Pelo seu relato, houve ali importunação sexual. Sem lesão aparente.
- Não é não, sim é sim, e o consentimento só é válido se ele for livre de coação, medo, ameaça, violência ou fraude. A mulher pode começar uma interação sexual com um homem e retirar o seu consentimento a qualquer momento. Dali pra frente, o que acontecer é crime.
Deixe seu comentário