Defender Depardieu é o mesmo que dizer: está liberado violar mulheres
O sucesso mundial de uma figura pública carrega muitos poderes. Um deles é o de ser exemplo, ditar comportamentos, mostrar o que é socialmente aceito ou não.
Quando um "monstro sagrado" como Gérard Depardieu é acusado por mais de dez mulheres de violações sexuais, e depois tem suas falas misóginas exibidas num documentário, ele ilustra o alto nível de aceitação da violência de gênero.
Exposto como alguém que sexualiza crianças e desrespeita as mulheres — "são todas vadias", diz, num vídeo divulgado pela televisão francesa —, Depardieu foi defendido pelo presidente francês e por mais de 50 personalidades da cultura, em manifesto publicado no Natal.
Para Emmanuel Macron, o ator de 74 anos é a vítima. Reforçando um discurso que silencia mulheres, o presidente francês afirmou que Depardieu é alvo de uma "caçada humana", coisa que Macron "odeia", e que o "ator imenso, gênio em sua arte, tornou a França conhecida em todo o mundo". Por isso, afirma, o acusado de agressão sexual e estupro "deixa a França orgulhosa".
As declarações foram feitas dias antes da circulação de uma carta aberta em defesa do ator, assinada por 32 homens e 24 mulheres, entre elas a cantora Carla Bruni, ex-primeira-dama do país, e a atriz britânica Charlotte Rampling.
No texto, as celebridades pedem que a sociedade não cancele o "último monstro sagrado do cinema" e permita que continue livre para atuar. Para os signatários, a própria arte é atacada quando se ataca alguém como Depardieu. Privar-se do trabalho do ator seria, dizem, "um drama", "um fracasso", "a morte da arte".
Tem mais: "O que quer que aconteça, ninguém poderá jamais apagar a marca indelével de sua obra. Todo o resto diz respeito à Justiça e apenas à Justiça".
É óbvio que eventuais condenações por violência sexual cabem à Justiça. O que essas personalidades estão dizendo tem muitas outras camadas, nada sutis.
A primeira é a ideia de que fazer comentários sexualizando meninas ou importunar mulheres seja algo da esfera privada: não é. Muito menos quando se trata de uma celebridade mundial, idolatrada por meninos e homens que podem achar aquilo um exemplo a seguir.
O recado central é a desimportância que se dá ao fato de elas serem tratadas como objetos, brinquedos sexuais à disposição dos homens — o que é a base da chamada cultura do estupro.
Existe, ainda, a camada de desconfiança em torno da palavra de mais de uma dezena de mulheres, que se dispuseram a enfrentar uma batalha pública contra um sujeito que conta até com o presidente para defendê-lo. O repúdio contundente à coragem delas afugenta milhares de vítimas da ideia de denunciar um violador. Quanto mais poderoso, pior.
Em nome da fama e do dinheiro que Depardieu atraiu para a França durante décadas, centenas de pessoas que testemunharam seu comportamento misógino já o vinham protegendo. Quando essa barreira estourou, vimos que a responsabilidade é coletiva. Como disse a atriz francesa Anouk Grinberg, Depardieu "é assim porque todo mundo permite que ele seja assim".
O que deixaria a França orgulhosa, mesmo, seria colocar fim a essa cumplicidade silenciosa.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.