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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Menina é bom porque ajuda em casa? Nossas filhas têm direito de ser criança

Criar um ambiente saudável, protegido e amoroso para nossas meninas é essencial para que elas se sintam felizes em ser quem são - Getty Images/iStockphoto
Criar um ambiente saudável, protegido e amoroso para nossas meninas é essencial para que elas se sintam felizes em ser quem são Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista de Universa

12/10/2022 04h00

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*Uma vez por mês, abro o espaço da minha coluna em Universa para outras mulheres negras. Hoje, é a vez da jornalista, assessora de imprensa de empresas de impacto social e repórter Clarice Tatyer, que é mãe de uma menina.

"Ainda bem que é menina, assim ela te ajuda em casa." Quem é mãe de menina já ouviu essa frase. Principalmente, se for a filha mais velha. Outra frase muito utilizada é "vai dar trabalho".

Trago esse tema porque ontem, terça-feira (11), foi o Dia Internacional da Menina, agenda estabelecida pela ONU (Organização das Nações Unidas) que passou a chamar a minha atenção, principalmente, após conhecer estudos, como os da Plan International, entre outras instituições, revelando que meninas trabalham mais em atividades domésticas do que meninos.

Me impactou saber que algumas se sentem culpadas ou punidas por serem meninas e que outras não gostam de ser quem são: a qual tipo de infância elas são submetidas? É importante distinguir o não gostar de ser criança e não gostar de ser menina, pois há muita diferença.

Um diálogo provocou a minha reflexão. Uma mulher que foi abusada pelo próprio irmão, durante a infância, e foi agredida mais tarde, quando adulta e em uma reunião de família, "atacou" o seu algoz trazendo memórias do passado. Isso ocorreu diante dos palavrões e tapas do seu irmão abusador e perante os demais membros da família que a julgaram e a acusaram de "requentar" um tema "já superado do passado" (superado por quem?).

A vítima concluiu o seguinte: "Muitas famílias podem suportar uma filha 'problemática' e apresentá-la como doente, mas não podem lidar com a sociedade e assumir que o filho é criminoso e estuprador. Portanto, irão silenciar a dor da menina até quando for possível".

Com certeza, o Dia das Crianças, que também é no mês de outubro, ganha mais atenção que o Dia da Menina. Os dois calendários são essenciais, sobretudo se considerarmos que algumas crianças são privadas do direito à infância. Mas o Dia da Menina, tanto quanto o Dia da Criança, deveria ser mais discutido, conforme meu entendimento, se observamos que em algumas culturas o nascimento de uma menina é uma questão nas famílias.

Algumas o "celebram" de maneira equivocada (a meu ver) porque acreditam que a vinda de uma menina representa mão de obra doméstica, que nada mais é do que privação do direito de ser criança, uma prática ainda muito comum e naturalizada nos lares. E ela será mais uma que cuidará das demais crianças, sejam irmãos, sobrinhos, primos etc.

Um parênteses: me lembro de uma conhecida que saiu de casa na adolescência, nunca mais voltou e, mesmo na vida adulta, mantém o distanciamento de sua família de origem justamente porque o fardo de cuidar dos irmãos mais novos era maior do que o corpo de menina (já sobrecarregado) e a mente de criança (já fatigada) poderia suportar.

Lembrando que as crianças que estavam ao seu cuidado não eram "pesos" e, sim, a transferência de responsabilidade feita por genitores que colocam crianças ao encargo de outras.

Fechados os parênteses, voltemos ao tema central: em outras casas, a vinda de uma menina é, às vezes, uma questão devido a inúmeros tipos de compreensão: ainda há tribos que matam a criança se a primogênita for menina (a primogenitura e o feminino mereciam um amplo espaço de discussão devido às nuances do contexto em diferentes povos e tradições antigas ou contemporâneas).

Também vemos casos em que mães projetam nas filhas os seus objetivos frustrados de serem modelos, por exemplo. Há, ainda, o contexto que envolve a relação de filhas com os namorados ou maridos das mães —muitas refletem sobre deixar suas filhas sob a responsabilidade de outro membro da família para não comprometer a criança ou o novo relacionamento. E por que não citar os relacionamentos com as madrastas? Ou o convívio com os demais membros das famílias como tio, primo, avô e, às vezes, o próprio pai?

Ser mulher é um desafio cheio de ambiguidades, incertezas e complexidades. Ser mulher adolescente estabelece outra problemática, mas ser menina, sobretudo, para nós que vivemos em um país que já esteve no ranking dos piores para as mulheres, é algo impossível de adjetivar.

Faço essa ponderação porque a mulher ainda pode lutar, mesmo nos contextos mais difíceis, sobretudo, o da violência doméstica, do risco de feminicídio e de tantos outros que violam a dignidade da pessoa humana, mas há uma busca pela autonomia, pela independência na maioridade.

A adolescente tem muitas barreiras nesse processo de luta, que já começa em um processo de entendimento social, de crítica, de observação e de revolta. Mas e a menina? Será que ela consegue interpretar o seu cotidiano e, consequentemente, confrontá-lo?

Já que hoje é o Dia da Criança é sempre bom lembrar o que diz nossa Constituição:

"É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

Não nos esqueçamos: isso também vale para as meninas.