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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que sonhar alto é um desafio para as pessoas negras?

A jornalista Gabriela Vallim realizou sonho de morar na Inglaterra e estudar inglês - Arquivo pessoal
A jornalista Gabriela Vallim realizou sonho de morar na Inglaterra e estudar inglês Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

02/02/2022 04h00

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Uma vez por mês, abro o espaço da minha coluna em Universa para outras mulheres negras. Hoje, é a vez da jornalista Gabriela Vallim*, que conta sua experiência para nós abaixo.

Meus sonhos sempre me levaram a lugares até então inimagináveis para minha realidade. Quando decidi tirar um ano sabático na Inglaterra para aprender inglês, não parei para pensar quais seriam os impactos dessa escolha na minha rotina diária, apenas queria, com todas as minhas forças, realizar esse projeto.

Sou uma mina preta, de quebrada, vinda de família pobre, com pais divorciados e saída de escola pública. Moro em Londres, falo inglês e, agora, sonho em me tornar uma versão brasileira da Bozoma Saint John, a executiva de marketing nascida em Gana que recebeu uma posição diplomática, além de ser atualmente chefe global de marketing na Netflix nos Estados Unidos.

Para pessoas negras, ter sonhos ousados é algo a ser aprendido e praticado, um desafio, pois nossos ancestrais foram submetidos a um processo violento de negação dos direitos humanos básicos, durante o período escravocrata com duração de 300 anos no Brasil.

Éramos comprados e vendidos como mercadorias, destruíram e tentaram enterrar nossos sonhos mas, como brilhantemente escreve a autora Conceição Evaristo, "eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer". Nós somos os sonhos dos nossos ancestrais. Sonhar é político, as futuras gerações da nossa família dependem das decisões e sonhos que temos hoje.

Vida nova em Londres e a surpresa de ver muitos negros em posições de poder

Para minha grande surpresa, 40% dos londrinos são negros, e 37% deles não são nascidos no Reino Unido, mas no continente africano ou no Caribe. Vieram para Londres com seus pais na infância. Na capital londrina, especificamente, é perceptível a presença de pessoas negras enquanto tomadores de decisões, exercendo com grande êxito outras profissões, além do esporte e da música. Nos hospitais, há muitos médicos africanos.

Há mulheres, idosos e jovens negros dirigindo carros de luxo como Range Rover, Porsche, Mercedes e BMW. Eu sorrio todos os dias ao ver negros nas propagandas da televisão, do metrô e dos outdoors, sem contar os jornalistas como âncoras e atores principais em filmes, series e reality shows.

Em Londres, a presença de pessoas negras nos espaços é uma realidade, não uma agenda a ser implementada.


Mas ser imigrante é exaustivo: tenho que aprender a língua, a cultura, fazer conexões do zero. A saudade, a distância da família e a brusca mudança climática faz com que nos sintamos, em alguma medida, depressivos, especialmente em dezembro, por causa das comemorações de final de ano.

A forma que encontrei para manter minha sanidade mental, além da terapia e atividades físicas, foi vivenciar a comunidade negra londrina e ressignificar minha negritude em um contexto global. Uma negra brasileira não era mais como as pessoas ao meu redor me enxergavam, já que na maioria das vezes acreditam que sou africana de países como Etiópia ou Egito, ou até francesa. Minha amiga Esther Ajibodun, 25, médica, nascida na Inglaterra com pais nigerianos, sabendo desse contexto, me fez o melhor convite possível: ir ao jantar de gala anual promovido pela marca Clijé, uma companhia britânica de bebidas não alcoólicas, fundada pelo empreendedor Simon Yemoh, 31.


Aos 27 anos, essa foi a minha primeira vez em um evento de luxo dentro de um castelo, rodeada de pessoas que se pareciam majoritariamente comigo. Já estive em jantares de gala em outras ocasiões, mas desse, provavelmente, nunca vou me esquecer, pois era o reflexo do Brasil que eu quero.

Meu sonho é que nós, brasileiros, possamos nos ver como realmente somos: o país com maior número de negros fora do continente africano. Hoje, além disso, somos também o país que mais nega oportunidades para essas pessoas. Quero um Brasil no qual jovens negros parem de ser brutalmente assassinados a cada 20 minutos. Não quero que precisemos cortar nossos dreadlocks, alisar nossos cabelos, tirar nossas tranças ou raspar careca para conseguirmos bons trabalhos.

Tenho o sonho de que todos — sem distinção entre orientação sexual, cor da pele, posição social ou religião — atuem juntos para construir um país onde vidas negras importam todos os dias e em todos os espaços.

Gabriela Vallim  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Gabriela Vallim
Imagem: Arquivo pessoal

*Gabriela Vallim é jornalista, educomunicadora e estudante de MBA em Marketing pela PUC. Atualmente em Londres, ela é consultora de comunicação e estratégia para empresas e professora de português para crianças.