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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Fui queimando até virar pó': por que burnout afeta mais as mulheres?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

19/01/2022 12h03

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Primeiro as dores de cabeça foram ficando cada vez mais frequentes e intensas. Depois, passei a ter constantes inflamações. Acabava de tratar as gengivas que haviam inflamado e já estava novamente no médico sofrendo de amidalite. Até conjuntivite eu tive. Meus ombros pesavam como se alguém estivesse sentado sobre eles, e a sensação de não estar dando conta das tarefas ia se agravando a cada sintoma.

Lá se vão mais de três anos entre idas e vindas ao pronto-socorro. Teve antibióticos, complexos vitamínicos e muita terapia. O que no início parecia um leve cansaço foi ficando cada vez mais angustiante, principalmente após o início da pandemia. Recentemente, veio o diagnóstico: síndrome de burnout.

Desde o início de 2022, a síndrome de burnout foi oficializada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como uma enfermidade crônica e incluída no Código internacional de Doenças, o CID 11. Também conhecida como síndrome do esgotamento, a doença está intrinsecamente conectada ao ambiente profissional. O indivíduo que sofre de burnout está sob intenso estresse físico e mental devido à rotina de trabalho intenso.

A tradução do termo em inglês significa queimar-se por completo. Era assim que eu me sentia. Como se eu tivesse me queimado por inteiro até virar pó. A energia que eu tinha empregado no desenvolvimento das tarefas era tanta que as horas de sono diárias não me recarregavam. Aliás, poucas horas de sono diário, pois eu dedicava cerca de 15 a 18 horas entre trabalho, tarefas da casa e filho.

Pense em um palito de fósforo. A faísca que se forma após o atrito do palito com a caixa gera uma chama vistosa e intensa. Ao longo do processo de combustão, a chama vai se exaurindo até que o palito apaga e o que sobra é só um pedaço de madeira torto e sem funcionalidade. Esta é a exata sensação que algumas pessoas sentem quando são derrubadas pelo burnout.

No Brasil, estima-se que cerca de 32% da população sofra de estresse crônico relacionado ao trabalho. E se burnout tiver gênero, provavelmente, será feminino.

As mulheres são sim as maiores vítimas da produtividade tóxica. A sobrecarga de trabalho que recai sobre nossos ombros tem nos levado a momentos de muita tortura.

Em 2019, a International Stress Management Association considerou o Brasil o segundo país do mundo com maior número de pessoas afetadas pela síndrome do esgotamento, ficando atrás somente do Japão.

Passados dois anos desde que o mundo identificou o primeiro caso de coronavírus, a ciência ainda não sabe tudo sobre a doença, mas nós já sabemos muito sobre o impacto da pandemia em nossas relações de trabalho. Segundo o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo), os casos ligados à exaustão no trabalho cresceram cerca de 21% durante a crise sanitária.

As pesquisas demonstram que, durante a pandemia, nós, mulheres chegamos ao colapso. Duas das frases que eu mais repeti nos últimos dois anos mostram isso: "estou cansada" e "não aguento mais".

Só que a gente vai dizendo "não aguento mais" e continua aguentando. Na sociedade da produtividade, quem não perdeu o trabalho durante a pandemia ganhou mais responsabilidade.

E o que dizer da uberização do trabalho, que colocou mais um peso nas costas dos brasileiros? Entregou a eles a responsabilidade de ser o chefe, o empregado e o supervisor, aumentando o nível de estresse e ansiedade. Você é o seu próprio agressor. Você se cobra intensamente e sabe que não pode ficar doente. Quem equilibrará os pratinhos na ponta do cabo de vassoura se você esmorecer.?

Sem perceber, fomos nos conformando com as exigências diárias de produção. Passamos a nos orgulhar de dar conta de tudo e de ter uma agenda lotada de compromissos e normalizamos o viver para o trabalho. Os privilegiados passaram a meditar para produzir melhor, a fazer exercícios físicos para ter mais concentração no trabalho, assistir séries e ler livros para se tornar mais criativo em suas produções.

Produza, produza, produza. Não tem corpo que aguente este excesso.

Ao pensar na base da pirâmide, onde estão as mulheres não brancas, veremos que o problema é ainda mais embaixo e que Deus foi capaz de dar a estas mulheres um fardo maior do que elas podem carregar.

Falo de mulheres que não fazem ideia do que significa burnout. Estão à mercê de um sistema de saúde deficiente incapaz de tratar o esgotamento físico e mental delas.

O reconhecimento do burnout como uma síndrome resultante da entrega doentia ao trabalho é um passo importante para que a gente consiga refletir e lutar por empresas mais estruturadas em prol da igualdade de oportunidades e pensar na nossa relação com a cultura do "produza a qualquer custo."