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Cris Guterres

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Piada de Rodolffo é o Brasil dando aquela espiada no reality do racismo

Rodolffo durante o castigo do monstro: cantor comparou cabelo da fantasia de homem das cavernas ao black power do professor João Luiz - Reprodução / Internet
Rodolffo durante o castigo do monstro: cantor comparou cabelo da fantasia de homem das cavernas ao black power do professor João Luiz Imagem: Reprodução / Internet

Colunista de Universa

06/04/2021 04h00

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Que me desculpem as pessoas negras que insistem em dizer que nunca sofreram racismo neste país, mas custo a acreditar que exista um negro sequer que não tenha ouvido uma ofensa racista direcionada ao seu cabelo. O choro e o sofrimento do professor João Luiz no BBB21, exposto na noite da última segunda-feira (5), em rede nacional, no desabafo sobre a "brincadeira" do cantor sertanejo Rodolffo, doeu na alma de quem já passou por isso.

João Luiz no momento do desabafo sobre comentário racista de Rodolffo no BBB21 - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
João Luiz no momento do desabafo sobre comentário racista de Rodolffo no BBB21
Imagem: Reprodução/Globoplay

Em meus ouvidos ainda ecoam as brincadeiras e comparações racistas que escutei durante anos e anos entre a minha infância e juventude e que na fase adulta continuaram sendo proferidas de forma indireta, mas ainda assim muito violentas. Por isso também me engasguei quando, há alguns dias, uma decisão judicial liberou Val Marchiori de indenizar a cantora Ludmilla após a socialite ter dito num programa de TV no Carnaval de 2016 que o cabelo da cantora estava "parecendo um Bombril".

Poucos dias após essa sentença, no sábado (3), Ludmilla foi a atração de uma festa do mesmo BBB onde, naquele mesmo dia, havia ocorrido a situação de racismo com o João Luiz. Rodolffo comparou a peruca que usava durante o castigo do monstro com o cabelo do professor, que ficou visivelmente agredido e chorou ao relatar o episódio à amiga Camilla de Lucas, falando da angústia gerada pelo comentário do sertanejo.

Ludmilla se apresentou no BBB 21 com lace lisa: cantora recebeu críticas pela escolha - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Ludmilla se apresentou no BBB 21 com lace lisa: cantora recebeu críticas pela escolha
Imagem: Reprodução/Instagram

Durante a festa, Ludmilla desabafou: "A próxima música que vou cantar agora fala sobre uma coisa que o mundo está precisando, que é respeito. Respeita o nosso funk, respeita a nossa cor, respeita o nosso cabelo. Respeita, c******!". A cantora pode ter direcionado a frase para Rodolffo, para Val Marchiori. Mas, acima de tudo, foi para o Brasil.

Após ter agitado a festa, Ludmilla foi bastante criticada pois usava uma peruca lisa durante o show e os comentaristas de plantão trataram logo de invalidar sua fala alegando que se ela quer respeito ao próprio cabelo que então use apenas o seu cabelo crespo.

Ludmilla é a rainhas das perucas. Não só usa as mais lindas e variadas versões como também ganha muito dinheiro comercializando as famosas laces. Um dia de trança, outro de peruca crespa, outro de cabelo rosa e, na semana seguinte, com um longo e estonteante cabelo liso e azul. Essa versatilidade se assimila à liberdade e se configura como um afronte à branquitude brasileira que não aceita ver um indivíduo negro protagonista de suas próprias histórias.

Sociedade autoritária que somos, adoramos sair de uma opressão e criar outra logo em seguida para justificar nossas narrativas de controle e para vender, vender e vender. Afinal de contas capitalismo, escravidão, racismo e repressão são sinônimos do mesmo balaio. Ontem, mulheres negras eram obrigadas a alisar para trabalhar. Hoje são obrigadas a encrespar para alimentar o mercado de produtos de beleza que cresce em escalada e para agradar o racista brasileiro que acha que sabe o que devem ou não fazer com o cabelo que é delas.

Uma mulher como Ludmilla transcende toda tentativa de dominação racial. A preta favelada que ficou famosa através da música, enriqueceu, virou empresária, conta milhares e milhares de reais vendendo produtos e cabelos, assumiu sua bissexualidade, faz apologia à maconha e ainda esfrega a bunda na cara da sociedade. Para muitos é difícil engolir Ludmilla linda, rica e preta.

O ódio à textura do cabelo, à própria cor da pele, ao formato do nariz, dos lábios é uma das ferramentas de dominação racial utilizadas pela branquitude. Você domina facilmente um sujeito que não consegue se identificar socialmente. Esta foi uma das maneiras que os europeus utilizaram para colocar em prática o ardiloso plano de sequestro cultural e físico de povos africanos.

A maioria dos negros já sabe que não precisa odiar seu próprio cabelo ou seus próprios traços fenótipos. Estamos falando de pessoas que foram além, sabem da beleza que têm. A mulher negra tem o direito de usar o cabelo que ela quiser e isto não vai determinar se ela é mais ou menos negra, ou se tem mais ou menos direito de lutar contra as injustiças raciais.

Somos constantemente categorizadas para atender as expectativas deste indivíduo que não aceita ver refletido em nosso semblante o belo sorriso gerado pela independência. Uma mulher negra que descobre sua própria visão de mundo carrega no rosto um orgulho que a branquitude entende como ultraje.

O pensamento racista vive latente restringindo, diminuindo, categorizando nosso corpos. 'Você deve usar o cabelo assim' ou 'você tem que se comportar desta maneira' são frases que vão muito além do que uma mera liberdade de expressão. Estamos diante de tentativas reais de limitação do nosso ser para que a gente caiba num lugar pequeno e subalternizado que foi delimitado para nós.

Vamos usar cabelos azuis, vamos usar tranças, vamos usar cabelo liso estilo Chanel, cabelo loiro, vamos usar um cabelo pela manhã e outro à noite. Vamos enriquecer mulheres negras que trabalham com alongamentos, apliques, alisamentos, transição capilar, perucas, tranças e tudo o mais que nos permita olhar no espelho para enxergar o traço acentuado da liberdade através dos nossos cabelos.

"Quem te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da sua pele, a ponto de você se clarear para parecer como um homem branco? Quem te ensinou a odiar o formato de seu nariz e deus lábios? Quem te ensinou a se odiar da cabeça às solas de seus pés? Quem te ensinou a odiar pessoas como você? Quem te ensinou a odiar a raça a qual pertence, a ponto de vocês não quererem estar próximos uns dos outros?"

Esse é um trecho de discurso proferido por Malcolm X, em maio de 1962 em Nova York.