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Cris Guterres

Amar é para os corajosos: como será meu 1º Natal como mãe de um adolescente

Cris Guterres e seu filho, Rafael - Arquivo pessoal
Cris Guterres e seu filho, Rafael Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

23/12/2020 04h00

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Quando conheci o Rafael, uma das primeiras perguntas que ele me fez foi o que eu iria fazer naquele Natal. Me perguntou assim na lata, no meio do mês de agosto. Fazia uma semana que minha mãe havia falecido e eu mal conseguia dizer onde estava naquele momento -imagina o que dizer sobre planos para o Natal.

Mas eu sabia bem o motivo daquela pergunta. Era o primeiro ano do Rafael num serviço de acolhimento para crianças e adolescentes e seu maior receio era passar o Natal ali. Ele já tinha ouvido as tristes histórias de outras crianças sobre o Natal num serviço de acolhimento e sabia que tudo o que não queria era estar ali numa noite que talvez nem fosse importante, mas era inundada de significados.

Minha resposta veio antecedida de uma longa e profunda respirada. Fui sincera e disse que não sabia onde passaria o Natal, mas que sabia com quem eu queria estar no Natal. Ele me arregalou os olhos e com medo de ouvir uma resposta desoladora perguntou baixinho: "com quem?" E eu, em voz alta e de maneira assertiva, disse: "Vou passar o Natal com você".

Naquele ano, eu ouvi essa pergunta mais umas cinco vezes. E após cada resposta, ganhava um abraço e um sorriso maior do que qualquer expectativa que eu podia ter daquela relação que se iniciava. Eu tinha me disponibilizado a ser madrinha afetiva do Rafael que era um adolescente de 14 anos de um serviço de acolhimento do extremo sul da cidade de São Paulo.

Quando se é um adolescente negro de 14 anos num abrigo, o que menos se tem no coração é esperança. Talvez por isso, a pergunta que eu mais ouvi, até mais do que o que ia fazer no Natal, foi "Por que você me escolheu?" Ele me perguntou isso inúmeras vezes. De dia, de madrugada, depois do almoço, antes de ir embora, sempre que chegava. Foram muitos os momentos e em cada um deles eu precisei lembrá-lo do quanto ele era especial e que eu não tinha motivos para não escolhê-lo.

Minha relação com o Rafael começou no primeiro semestre de 2019. Eu queria muito ressignificar a minha vida e a dele e me disponibilizei por completo para amadrinhá-lo afetivamente.

O processo de amadrinhamento/apadrinhamento afetivo é uma alternativa apoiada pelo judiciário brasileiro para oferecer possibilidades afetivas a crianças e jovens que vivem em casas de acolhimento. Os candidatos a madrinha ou a padrinho são orientados de que a única entrega exigida nesta relação é de tempo e carinho.

Cris Guterres e seu filho - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Nosso Natal de 2019 foi simples e mágico. Passamos eu, ele e meu irmão na nossa casa. Eu, muito tomada emocionalmente pelo meu primeiro Natal sem minha mãe e ainda sem entender muito sobre os sentimentos tão intensos que envolviam a presença daquele menino dentro do meu coração.

A minha conexão com o Rafael foi imensa. Nos unimos de uma maneira tão intensa que alguns meses depois eu tinha percebido que já não era mais a madrinha e sim a mãe daquele menino.

Entrei com pedido de adoção no início deste ano e, entre idas e vindas de um tumultuado processo de adaptação, estamos morando juntos como mãe e filho já há alguns meses.

Longe de mim querer romantizar relação de mãe e filho neste texto. Já começo me justificando, pois parece que tudo o que leio sobre maternidade vem deste lugar onde as histórias são perfeitas, as mães dão conta de tudo sem cometerem nenhum erro e os filhos são crianças saudáveis e felizes. Não, na minha casa não é assim.

Aqui temos uma família real. Eu sou a mãe que de vez em sempre se sente cansada e de saco cheio. Rafael é o filho que também fica nervoso, que contraria, que não estuda e quase nunca quer fazer a lição de casa. Aqui é a realidade.com.br, sem romantismo.

São muitos os meus aprendizados nesta nova fase da minha vida. Nas pesquisas e reflexões que elaboro comigo mesma no aconchego do meu raciocínio, descobri que o amor é um sentimento involuntário a todo ser humano, não podemos evitar sentir amor. Até mesmo o mais frio dos assassinos terá amor por algum objeto ou por um animal de estimação que seja. Mas a ação de amar é uma escolha. Amar é para os corajosos.

O Rafael me trouxe o entendimento de que a ação de amar é um ato de muita coragem. Só os corajosos amam e se deixam ser amados. Quando a coragem toma a frente, a gente consegue mostrar pro outro que ele não está só. Consegue fazer com que ele se sinta em paz, sem precisar ter medo da solidão.

Esta semana passarei meu primeiro Natal oficialmente como mãe. É mais um dia especial na minha vida. Todos os dias com o Rafa são especiais, até mesmo os dias em que eu sinto uma vontade imensa de sair correndo sem olhar pra trás. O Natal será mais um dia comum em nossas vidas.

Especial mesmo é ouvir ele perguntar onde nós passaremos o Natal, porque o amor já o ensinou que não existe mais uma Cris e um Rafael, mas sim uma família.