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Cris Guterres

Chadwick Boseman: uma declaração de amor ao herói negro

Chadwick Boseman em poster de "Pantera Negra" - divulgação/Marvel
Chadwick Boseman em poster de "Pantera Negra" Imagem: divulgação/Marvel

Colunista do UOL

01/09/2020 04h00

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A estreia do filme Black Panther acabava de ser anunciada no Brasil quando a Mayara Silva me ligou e pediu ajuda para o seu ousado plano. Alugar, por R$ 11 mil, uma sala de cinema num shopping de classe média alta em São Paulo e colocar cerca de 350 pessoas negras juntas assistindo ao primeiro super-herói negro do cinema, Rei de Wakanda, o Pantera Negra.

No sábado (29), surpreendida com o anuncio da morte do ator Chadwick Boseman, que eternizou o personagem no cinema há dois anos, me lembrei de todas as emoções que nos transcenderam naquele dia histórico. Centenas de pessoas negras juntas no cinema para assistir a um filme que esperávamos por décadas.

Junto de outras mulheres, nós movimentamos doações, trouxemos crianças de abrigos municipais para o cinema, chegamos a convidar jovens que trabalhavam como limpadores de vidros de carros nos faróis próximos ao shopping. Queríamos que todos pudessem sentir o poder transformador da representatividade.

A representação do negro na indústria do entretenimento sempre foi estereotipada. Os personagens negros que assistimos nas novelas, filmes e séries são, na maioria, representados como malandros, traficantes ou ladrões.

Hollywood é especialista em criar narrativas onde o personagem negro só é um homem vitorioso quando salvo por uma pessoa branca. Um jovem adotado por um casal branco que se torna um grande empresário ou um profissional mentorado por um branco salvador.

T'Challa, nome do Pantera Negra na ficção, era o protagonista que nunca tivemos. O herói que nunca nos permitiram ser. Pela primeira vez, nós negros nos reuníamos para sentir o que os brancos sentiam quando assistiam a capa do Super-Homem flamejar pelos céus de Metrópolis. Estávamos em êxtase com a sensação de prazer que o Pantera nos apresentava.

A morte de Boseman por câncer surpreendeu a todos. O ator teria escondido a doença já em 2016 para conquistar o papel de Pantera Negra. Se tivesse revelado o tratamento, certamente não teria vivido o protagonista do filme que se tornou a maior bilheteria de super-heróis da história do cinema, U$ 1,3 bilhão.

A realidade que fundamenta o nascimento de um ídolo é determinada por diversos fatores e Boseman os conhecia muito bem. A ascensão no papel permitiu relevância suficiente para modificar, ao menos, o cenário dos filmes em que atuava.

Passou a exigir que 50% da equipe fosse composta por pessoas negras. Deixou inúmeras mensagens através de suas atitudes mostrando que sabia o quão importante era para os jovens negros que ele tivesse interpretado esse papel.

O filósofo Edgar Morin, em seu livro "As Estrelas: mito e sedução do cinema", pesquisou e escreveu sobre o fascínio que os astros de Hollywood exercem sobre o público. Morin afirma que o fã se identifica com seu ídolo e projeta nele seus desejos e a expectativa de que este herói faça o que ele gostaria de fazer.

Foi exatamente isto que eu vi nos olhos das mais de 350 pessoas que assistiram comigo e com Mayara ao filme naquele cinema. Vi em cada um dos olhares a felicidade ao se descobrir vivo através da identificação com o herói.

As explosões de força e inspiração naquele dia foram maiores sobretudo com as crianças. A identificação com o herói era tão grande que nunca me esquecerei de Yuri, um garoto de 11 anos que, ao chegar ao cimema, me disse que seu herói favorito era o Super-Homem porque ele voava rápido como um pássaro. Ao final do filme, ele me procurou ofegante.

Saiu do cinema com os olhos brilhando como dois faróis que iluminavam o caminho de quem estava perdido. A emoção na voz quando veio falar comigo me deixou arrepiada antes mesmo que ele terminasse de completar o que queria me dizer.

Com um sorriso imenso em seus lábios contou como estava feliz de ter visto um super-herói que se parecia com ele. "Agora o meu herói favorito é o Pantera Negra porque ele se parece comigo. Temos a mesma cor e o mesmo cabelo", disse o menino com a coragem no peito de quem descobre o amor por si próprio.

Gratidão a Chadwick por sua jornada na terra e por ter nos feito descendentes de Wakanda num em território eterno.