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Vacina contra a covid fez a gente ver que ter mais tempo de vida é algo bom

A apresentadora Fátima Bernardes, 58, é vacinada com a primeira dose da vacina contra a covid-19 - Instagram/@fatimabernardes
A apresentadora Fátima Bernardes, 58, é vacinada com a primeira dose da vacina contra a covid-19 Imagem: Instagram/@fatimabernardes

Colunista de Universa

19/06/2021 04h00

Na semana passada, estive na curiosa situação de observar dezenas de pessoas com a minha idade dispostas em uma fila indiana. Era a fila para a minha primeira dose da vacina contra a Covid-19. Por que vi a situação como curiosa? Porque estávamos felizes com a idade que tínhamos alcançado! Eufóricos, até. Finalmente, chegávamos à conclusão, óbvia, de que ter mais tempo de vida é uma coisa boa (Como dizem por aí, envelhecer pode não ser um paraíso, mas a alternativa é muito pior).

Meus colegas de fila nasceram no começo dos anos 60. Para fins estatísticos, estão muito próximos de se tornarem idosos. Mas, apesar de ouvir uma queixa de dor no joelho aqui e ali, os quase-idosos não se comportavam como "pessoas idosas". O estereótipo de velhice tinha passado longe.

Será que estamos rejuvenescendo a velhice ou será que a velhice é, como outras condições humanas, vítima de preconceito? Imagino que sejam as duas coisas. Estamos chegando aos 60 anos mais "inteiros" do que nossos pais e avós. Por outro lado, conforme avança o envelhecimento demográfico dos moradores deste planeta, aumentam também as preocupações sobre a forma como eles são e serão tratados pelos mais jovens.

Recentemente, um relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde), mostrou que metade das pessoas entrevistadas admitia algum tipo de preconceito contra pessoas mais velhas. Na lista dos países que discriminam ou não a população idosa, o Brasil se encontrava em um lugar mediano. Não é um modelo de atitude positiva, como a Austrália, nem chega a ser um inferno para os mais velhos, como a Índia. Somos moderadamente preconceituosos. Esse preconceito se chama idadismo.

Você pode se perguntar se precisamos de mais um verbete na lista de preconceitos. Mas este não é um caso de uma palavra nova, apenas. A presença do idadismo neste texto chama a atenção para a maneira que a maior parte de nós olha para o envelhecimento. Estereotipar velhos leva ao preconceito e o preconceito leva à discriminação. Estes são os três passos dos ismos: estereótipo, preconceito, discriminação.

Discriminamos quando deixamos de empregá-los, de escutá-los, de tratá-los como seres autônomos. A OMS diz que um estereótipo comum é o fato de considerarmos os mais velhos como dependentes, um fardo para a sociedade. É um erro de avaliação apontado por vários estudos. No Brasil, pesquisa do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos mostrou que dos quase 40 milhões de brasileiros com mais de 60 anos, 75% contribuíam com pelo menos metade da renda familiar.

A OMS propõe, então, que os gastos em sistemas de saúde, vistos como custos, sejam abordados como investimentos. Veja o que ela fala sobre o assunto: "Esses investimentos também ajudam as sociedades a atender suas obrigações relacionadas aos direitos fundamentais das pessoas mais velhas. Em alguns casos, o retorno sobre esses investimentos é direto (sistemas de saúde melhores conduzem a uma melhor saúde, que permite maior participação e bem-estar).

Outros retornos podem ser menos óbvios, porém exigem o mesmo grau de consideração: por exemplo, investimento em cuidado de longo prazo ajudará pessoas com perda significativa de capacidade a manter vidas dignas e também pode permitir que as mulheres permaneçam no mercado de trabalho, além de promover a coesão social por meio do compartilhamento de riscos em uma comunidade". A citação a mulheres tem a ver com o fato de elas terem uma expectativa de vida mais longa. A citação à capacidade tem a ver com a autonomia funcional. "As pessoas mais velhas têm o direito de fazer escolhas e assumir o controle de uma série de questões, incluindo onde vivem, os relacionamentos que têm, o que vestem, como passam seu tempo e se submetem-se a tratamento ou não", continua o relatório da OMS.

Como iremos envelhecer, como país, em poucas décadas, está mais do que na hora de pensar sobre como trataremos as pessoas mais velhas. Na mesma semana em que me vacinei, houve uma certa comoção com a notícia de que a bíblia dos profissionais de saúde, a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, CID, publicado pela OMS (veja a ironia), havia introduzido o verbete velhice em sua lista.

Velhice é doença agora? Essa foi a pergunta que muitos se fizeram. Alguns médicos viram a classificação como um reforço do preconceito, um idadismo anacrônico da organização. "Lamentável esta classificação. Economicamente as pessoas poderão ser dispensadas do trabalho por velhice? Os convênios poderão recusar o ingresso da pessoa ou aumentar o valor da cobrança ou deixar como causa pré-mórbida por velhice?", pergunta a neurologista Sônia Brucki, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, USP, e estudiosa da doença de Alzheimer.

Já outros, como o médico de família Gustavo Gusso, que estudou a classificação das doenças em seu doutorado, acham que o verbete não associa a velhice com doença. "O verbete é confuso, infeliz até", diz ele. "Mas faz muito tempo que o CID classifica, além de doenças, também condições, sintomas e nomenclaturas médicas." Nesse sentido, diz ele, velhice é um verbete tão neutro quanto gravidez.
Estamos apenas no começo de uma longa conversa sobre envelhecimento. E já estamos atrasados.

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