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Ana Paula Xongani

Existe uma consciência negra na moda brasileira?

Mãos negras constróem parte das peças que alimentam a indústria da moda - Getty Images
Mãos negras constróem parte das peças que alimentam a indústria da moda Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

12/11/2020 04h00

Complexidades, grandes movimentos e celebrações: começou o mês da Consciência Negra. Neste período, destaca-se nos mais diferentes espaços algo que deveria ser regra, principalmente neste país, a presença negra. Mês que marca, principalmente, a produção de conteúdos que pretendem promover a reflexão - nas pessoas negras e não negras - sobre a percepção histórica e cultural que se tem dos negros na sociedade.

Esta coluna fala, basicamente, de sociedade e comportamento, com uma tendência a ter como ponto de partida a lente da moda. Proponho então, que no texto de hoje, a gente olhe também para a presença negra a partir de novos olhares e perspectivas. Um reconhecimento de pertencimento que é urgente e fundamental.

Se são mãos negras que há muito tempo costuram neste país, cabe perfeitamente dizer que a moda negra data de muito tempo e reflete diferentes estéticas, registram diferentes períodos históricos. A moda no Brasil é fundamentalmente negra.

Ainda que o universo comumente valorizado na moda seja a partir de uma estética eurocentrada, que reflete conceitos e ideias de pessoas brancas, são mãos negras que muitas vezes concretizam esta moda.

Quem conhece um pouquinho do processo de confecção, sabe que costurar é como pintar um quadro. Por mais que alguém te diga quais são as tintas que você tem que usar ou o ângulo do pincel, são as suas mãos que vão de fato imprimir aquela tela.

Seguindo essa analogia, não fica difícil chegarmos juntes à consciência de que a moda brasileira carrega, desde sempre, impressões estéticas, informações, técnicas e saberes de mãos negras. E é desse lugar de compreensão que precisamos fazer o real reconhecimento que a moda negra merece.

Às vezes, tenho a impressão de que essa "contemporaneidade" na construção das narrativas sobre moda negra cria uma ideia errada de que a moda negra tenha começado agora. Mas, precisamos falar disso com honestidade, entendendo os processos históricos da participação destas pessoas na criação e confecção de moda por aqui.

Recentemente, fiz um curso de moda em que a maioria dos participantes eram pretes e negres. Quando começamos a conversar e nos conhecer, a partir de um processo de resgatar nossa ancestralidade recente - pais, avós e bisavós, percebemos que a maioria de nós tinha nas suas famílias alfaiates, costureiros, bordadeiras, chapeleiras.

Carregávamos esta herança ancestral que evidencia o quanto pessoas negras fizeram e fazem parte deste ecossistema; e também o quanto tem suas presenças invisibilizadas. É preciso ampliar o olhar: não podem reduzir a moda exclusivamente a quem cria uma peça no papel. Sem deixar de exaltar estilistas negros que tem criado suas trajetórias, não podemos entender como moda negra apenas este lugar.

Precisamos incluir nessa matemática também quem concretiza as peças que a gente usa, as mãos que costuram, as mentes que criam, recriam e adaptam técnicas que entregam soluções e referências de moda. Muito disso falo também numa entrevista com Hanayrá Negreiros, pesquisadora dedicada da indumentária negra.

Tem também uma outra coisa importante: às vezes, ficamos esperando uma moda estereotipada para reconhecer que esta moda é negra, mas a partir da lógica que construo aqui, digo que camisa branca também é moda negra, porque tem mãos negras no seu processo de produção.

Em um momento que fala-se tanto de moda transparente e sustentável, sobre termos a possibilidade de saber de onde vem e por onde passou cada peça que a gente usa, criando uma nova consciência de moda, é fundamental que esse raciocínio extrapole o "agora" e seja levado também para a nossa história, que a gente recupere, de forma transparente e honesta, os processos da moda que trouxeram a gente até aqui.

Sem isso, corremos o risco de não reconhecer grandes artistas que, hoje e ontem, criam e produzem para si, para os outros, para uma sociedade inteira ao longo dos séculos. Corremos o risco de não valorizar cortes, costuras, bordados e muitas outras técnicas que são determinantes para a moda e seus resultados estéticos.

Que tal começarmos agora então, aproveitando o mês de novembro, a refletir sobre consciência negra na moda?

Hoje, quando eu coloco uma camisa branca ou qualquer outra peça costurada por mãos pretas, faço questão de chamar isso de moda negra. Pra mim, significa reconhecer estes artistas de quem ninguém fala, ninguém reconhece ou exalta. Quem aí está pronto pra fazer o mesmo?