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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Caso Samuel Klein: não podemos mais silenciar sobre violências sexuais

Samuel Klein, fundador das Casas Bahia - Janete Longo/Folhapress
Samuel Klein, fundador das Casas Bahia Imagem: Janete Longo/Folhapress

Luciana Temer

Especial para Universa

22/04/2021 04h00

Semana passada uma matéria veiculada pela Agência Pública, uma agência de jornalismo investigativo sem fins lucrativos, realizou a proeza de unir em torno do mesmo assunto pessoas conectadas às questões de gênero, militantes do enfrentamento às violências sexuais contra crianças e adolescentes e empresários.

Falo da reportagem que revela um suposto esquema de exploração sexual de crianças e adolescentes que seria praticado por Samuel Klein, um notório "selfmade man", o fundador das Casas Bahia, morto em 2014. Aparentemente, tal prática teria continuado em família, já que Saul Klein, filho de Samuel, está sendo investigado por aliciamento e estupro de mais de 30 mulheres.

Segundo a reportagem, o empresário pagaria com dinheiro, presentes como tênis e produtos de suas lojas, por favores sexuais de meninas de baixa renda. Isso teria acontecido não uma, duas ou dez, mas centenas delas, durante décadas. A matéria traz vários relatos de vítimas, fotos e também um vídeo deplorável, no qual o empresário aparece em uma piscina durante uma "festa", cercado de adolescentes que aparentavam ter menos de 18 anos. É de virar o estômago.

Para além das vítimas, foram também ouvidos funcionários das lojas, motoristas, seguranças e o porteiro de um dos prédios que ele frequentava. O fato também era conhecido pelos pilotos do seu helicóptero (que transportavam as meninas para onde ele estivesse) e pelos marinheiros da lancha na qual parte das "festas" aconteciam.

A prática também devia ser conhecida pelos vizinhos de um dos seus apartamentos, pois eles conseguiram expulsá-lo do prédio por não aguentarem conviver com o constrangimento causado pela fila de meninas que se formava na frente do edifício quando ele estava lá. Outro dado importante diz respeito aos acordos judiciais feitos para calar vítimas que o denunciaram e inquéritos policiais que não prosperavam.

Enfim, dizer que Samuel Klein vivia uma "vida secreta" é ridículo. Ele vivia escancaradamente sua perversidade sexual e, segundo as vítimas, praticava seus crimes abertamente e à luz do dia. Então, como se explica que só agora, sete anos após a sua morte, isso tenha vindo à tona? Como tantas pessoas podem ter se calado?

Há quatro anos presido o Instituto Liberta, de enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes no Brasil, e, desde então, venho fazendo uma imersão profunda na temática da violência sexual. Vou aqui dizer algumas coisas que são óbvias para quem conhece o assunto. Lá vai:

1. Mais de 4 meninas são estupradas por hora no Brasil. Apesar das vítimas da violência sexual serem de ambos os sexos, o percentual de registros de casos de meninas é maior (e acredito que também de ocorrências), seguramente por sermos um país machista.

2. Dentre as meninas vítimas, há uma preponderância de meninas negras, seguramente por sermos um país racista.

3. Os registros existentes são todos de estupro de vulnerável (crime previsto no Código Penal, que implica na relação sexual de um adulto com uma pessoa menor de 14 anos). A subnotificação é gigante, seguramente por ser uma violência, na maioria dos casos, intrafamiliar.

4. O Brasil é considerado um dos países que mais "prostitui" suas meninas, no entanto, os registros de exploração sexual (crime previsto no Código Penal que implica pagamento em dinheiro ou qualquer outra coisa, para um adulto se relacionar sexualmente com uma pessoa entre 14 e 18 anos) são praticamente inexistentes.

Dito isso, proponho uma breve reflexão. No Brasil, a violência sexual contra crianças e adolescentes, apesar de gigante, não é enxergada, portanto, não é considerada um problema que exige sério enfrentamento. E por que é assim? A resposta para as duas situações de violência é distinta.

No caso do estupro de vulnerável porque ele é tomado como exceção. Acredita-se, equivocadamente, que o chamado "abuso sexual" é algo que acontece de vez em quando com pessoas muito pobres, praticado por um "monstro pedófilo", quando na verdade ele é extremamente comum, tem lugar em todas as classes sociais, e é praticado normalmente por pessoas próximas e queridas da vítima.

Já no caso da exploração sexual, a razão é outra. Em 2018, nós do Instituto Liberta encomendamos uma pesquisa para o Datafolha a fim de entender o que a sociedade pensava sobre o crime de exploração sexual. O resultado foi que quase 100% das pessoas sabiam que pagar para fazer sexo com alguém menor de 18 anos é crime. Mas, do universo de entrevistados que já haviam presenciado ou tinham conhecimento de alguma situação de exploração sexual de meninas, só 29% denunciaram.

A verdade é que nossa sociedade, machista e preconceituosa, culpabiliza meninas e mulheres pelas violências que sofrem e, no caso da exploração sexual, as meninas são consideradas "prostitutas" e não vítimas. Em 2020 lançamos o documentário "Um Crime Entre Nós", que fala justamente desta invisibilidade.

Isso explica porque muitos, ao lerem a reportagem com acusações a Samuel Klein, podem ter se pego pensando, "ah, mas se ela diz que foi violentada, por que voltou?". E isso, quase que automaticamente, faz dela "cúmplice" da exploração (em muitos casos estupro de vulnerável porque a vítima tinha menos de 14 anos).

Parece difícil ter empatia por essa menina. Mas não pode ser. Não podemos culpar uma menina em formação, vulnerável social e psicologicamente falando, por ter sucumbido às ofertas de benefícios que dizem ter sido feitas por este homem tão poderoso.

Aliás, não podemos culpar menina nenhuma, em nenhuma circunstância, pela violência sexual que sofreu. Mas é isso que acontece. E é por isso que todas aquelas pessoas, que sabiam exatamente o que se passava, nunca denunciaram. Para a nossa sociedade, a menina que se deixa explorar é tão culpada quanto o sujeito que explora

Pode-se argumentar que o silêncio dos funcionários se deu em razão da necessidade de manterem o emprego e mesmo do medo de enfrentarem o patrão... Mas e quanto aos vizinhos do condomínio luxuoso? E o sistema de Justiça, que celebrou acordos e engavetou inquéritos? Podemos tentar arrumar desculpas para o silêncio das pessoas ou ao contrário, culpá-las pelas suas omissões, mas o que temos que fazer, na verdade, é mudar essa realidade.

E isso só vai acontecer quando olharmos verdadeiramente e com coragem para os nossos preconceitos e estereótipos e mudarmos a forma como nos relacionamos com as violências sexuais, inclusive falando abertamente sobre elas. Enquanto isso não acontecer, pessoas como Samuel e Saul poderão continuar agindo impunemente.


* Luciana Temer é advogada, professora da PUC-SP e presidente do Instituto Liberta, de combate à exploração sexual infantil e adolescente