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Entenda o PL das Fake News, inspirado em lei alemã

Jeremy Bezanger/Unsplash
Imagem: Jeremy Bezanger/Unsplash

Jean-Philip Struck

29/04/2023 09h40Atualizada em 29/04/2023 09h43

A Câmara Federal deve votar na próxima terça-feira (02/05) o Projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, que ficou conhecido como PL das Fake News. O projeto prevê medidas para o combate à desinformação nas redes sociais e regras para a atuação e responsabilização das chamadas big techs no Brasil.

Em discussão há três anos, o projeto ganhou força recentemente, após os ataques golpistas de 8 de janeiro e ataques a escolas em São Paulo e Blumenau.

Proposto originalmente pelo senador Alessandro Vieira (PSDB-SE) e aprovado pelo Senado em 2020, o texto que será votado sofreu modificações incorporadas pelo relator do projeto na Câmara, deputado Orlando Silva (PC do B-SP).

Nesta quinta-feira, Silva retirou do projeto o artigo que previa a criação de uma agência fiscalizadora para aplicar as medidas e incluiu trechos para reforçar que o texto não tem a intenção de afetar a liberdade religiosa, como forma de aplacar a bancada evangélica.

Se passar na Câmara, o texto voltará ao Senado, que deverá avaliar as mudanças. Caso também seja aprovado novamente pelos senadores, o PL seguirá para sanção presidencial.

Projeto em parte inspirado em lei alemã

O PL das Fake News tem parte do seu conteúdo inspirado na alemã Netzwerkdurchsetzungsgesetz, ou NetzDG (Lei de Fiscalização da Rede, em tradução livre), que ficou conhecida no país europeu como "Lei do Facebook". Implementada em 2017, a lei alemã rapidamente serviu de modelo para outras legislações mundo afora, e foi citada no voto do relator do projeto brasileiro.

Seus principais pontos são a obrigação da remoção de conteúdos "claramente ilegais" em até 24 horas, a previsão de multas de até 50 milhões de euros em caso de descumprimento e a instituição de canais de denúncia. O texto mira especialmente redes sociais com mais de 2 milhões de usuários na Alemanha e teve como principal motivação o combate à divulgação online de conteúdo extremista.

Em 2021, uma emenda foi adicionada à lei, obrigando as redes a reportarem conteúdo específicos ilegais para a polícia federal alemã. A medida foi tomada após uma série de ataques de motivação extremista de direita, como o assassinato do político conservador Walter Lübcke e um atentado contra uma sinagoga em Halle.

Desde então, as redes têm que comunicar as autoridades sobre conteúdos que põem em perigo o Estado Democrático de Direito, atentam contra a ordem pública, incluem pornografia infantil ou constituem ameaça à vida, à autodeterminação sexual ou à integridade pessoal.

Em julho de 2019, o Facebook foi multado pelas autoridades alemãs em 2 milhões de euros por subnotificar denúncias sobre conteúdo ilegal.

O alcance do projeto de lei brasileiro

O PL das Fake News tem pontos mais brandos que a lei alemã, mas prevê um alcance maior em relação à aplicação. As normas brasileiras se aplicariam aos provedores com número de usuários no Brasil maior do que 10 milhões, mas não se limita a plataforma sociais, incluindo também serviços de mensagens instantâneas e ferramentas de busca. Assim como na Alemanha, veículos de imprensa e aplicativos de videoconferência não estão contemplados.

O projeto também estabelece que as redes sociais tenham representação no Brasil, para o caso de precisarem ser acionadas judicialmente e administrativamente. Em 2022, o aplicativo Telegram entrou na mira do Judiciário por ignorar contatos e ordens de tribunais. Depois de ter o aplicativo bloqueado em todo o país, a empresa finalmente apontou um representante brasileiro.

Crimes e mecanismos de denúncia

De acordo com o projeto, decisões judiciais que determinarem a remoção imediata de conteúdo ilícito relacionado à prática de crimes deverão ser cumpridas pelas plataformas no prazo de até 24 horas, sob pena de multa.

Da mesma forma que já ocorre na Alemanha, o PL das Fake News prevê que as plataformas deverão disponibilizar aos usuários mecanismos de denúncia e "atuar diligentemente para prevenir e mitigar" uma série de crimes.

Na lista estão crimes contra o Estado Democrático de Direito, atos de terrorismo e preparatórios de terrorismo, crime de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, crimes contra crianças e adolescentes e de incitação à prática de crimes contra crianças e adolescentes, crime de racismo, violência contra a mulher, infração sanitária, por deixar de executar, dificultar ou opor-se à execução de medidas sanitárias quando sob situação de Emergência em Saúde Pública.

Além disso, os provedores terão que elaborar e publicar relatórios de transparência semestrais com informações sobre a moderação de conteúdo.

Responsabilização, publicidade paga e robôs

Embora os provedores não possam ser imediatamente responsabilizados por conteúdos individuais falsos ou criminosos produzidos por usuários comuns, a avaliação muda no caso da distribuição paga ou publicidade. Pelo texto, as plataformas serão responsabilizadas de forma solidária pela reparação de danos se essa distribuição tiver sido feita mediante pagamento.

Além disso, o texto determina que as plataformas exijam a identificação, por meio de documento válido, de anunciantes e usuários que pagam para impulsionar conteúdo. A medida mira especialmente anúncios de golpes financeiros disfarçados ou a propagação de fake news.

O texto ainda prevê a tipificação de um novo crime, que envolve usar robôs para divulgar em massa mensagens inverídicas sobre o processo eleitoral ou que possam causar dano à integridade física.

De acordo com o projeto, será considerado crime "promover ou financiar, pessoalmente ou por meio de terceiros, mediante uso de conta automatizada e outros meios ou expedientes não fornecidos diretamente pelo provedor de aplicações de internet, divulgação em massa de mensagens que contenha fato que sabe inverídico, que seja capaz de comprometer a higidez do processo eleitoral ou que possa causar dano à integridade física e seja passível de sanção criminal". A pena prevista é de um a três anos de reclusão e multa.

Limitações em aplicativos de mensagem

O projeto também prevê a necessidade de consentimento para inclusão em grupos ou listas de transmissão em aplicativos de mensagens e que exista uma limitação no número permitido de encaminhamento de mensagens ou mídias.

Segundo a proposta, haverá uma limitação de encaminhamentos de mensagens ou mídias recebidas de outro usuário para múltiplos destinatários.

Listas de transmissão, por exemplo, somente poderão ser encaminhadas e recebidas por pessoas que estejam identificadas tanto nas listas de contatos de remetentes e destinatários.

Nos últimos anos, a criação da ferramenta de Comunidades do WhatsApp, que permite criar grupos com até 5 mil pessoas, levantou acusações de que esses aplicativos de mensagens deixaram de ser simplesmente um espaço de comunicação interpessoal e passaram, na realidade, a funcionar como meios de comunicação de massa. Os efeitos desse tipo de ferramenta foram sentidos nas eleições de 2018, quando aplicativos se tornaram uma arena de disparos em massa de fake news.

Punições

Caso os provedores não cumpram decisões judiciais para a remoção de conteúdo, as multas podem variar de R$ 50 mil a R$ 1 milhão por hora de descumprimento e poderão triplicar de valor caso envolvam publicidade paga.

No caso de descumprimento das normas previstas na lei, os provedores poderão enfrentar multas que podem chegar a 10% do faturamento da empresa no Brasil ou de R$ 10 a R$ 1.000 por usuários cadastrado, com limite de R$ 50 milhões. Também estão previstos mecanismos de suspensão temporária das atividades.

Imunidade e bloqueios

O projeto inclui ainda um artigo que prevê a extensão da imunidade parlamentar nas redes sociais. Esse artigo gerou controvérsia e temor de quer acabe funcionando como uma "blindagem" para deputados que usam suas redes para propagar mentiras. Também foi levantado o temor que as plataformas sejam mais lenientes com contas de políticos com mandato.

Por outro lado, o relator afirma que a inclusão foi apenas "redundante", já que a imunidade está assegurada na Constituição e que, mesmo com esse privilégio, políticos com mandato podem ser processados e presos.

O projeto também estabelece que autoridades políticas com mandato ou que ocupem cargos em ministérios e secretarias não poderão mais bloquear usuários em suas contas institucionais ou impedir a visualização de publicações.

Durante o governo de Jair Bolsonaro, o então presidente bloqueou vários jornalistas em suas redes sociais. Os bloqueios chegaram a resultar numa ação judicial movida pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Remuneração de conteúdos jornalísticos

Um dos pontos do projeto prevê que as plataformas sociais remunerem empresas de mídia pelo conteúdo jornalístico veiculado. Uma exceção à regra seriam matérias jornalísticas compartilhadas por usuários, algo que deve aliviar a situação para plataformas como o Facebook. No entanto, causa mais impacto no Google, que tem um sistema agregador de notícias. Legislações semelhantes já existem na Austrália e Canadá.

O texto ainda determina que os valores a serem pagos pelas plataformas serão objeto de negociações diretas entre as empresas envolvidas. Caso não haja acordo, entrará em cena um mecanismo de arbitragem, função que será assumida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), para evitar que as plataformas abusem de sua posição dominante na negociação com as empresas jornalísticas. O PL ainda determina que as plataformas não poderão remover conteúdo jornalístico para escapar do pagamento.

A remuneração é defendida por grandes empresas jornalísticas representadas pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert).

Outras entidades, que representam profissionais da imprensa, como a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Federação Nacional dos Jornalistas (FNJ), inicialmente defenderam que o tema fosse tratado em um projeto à parte, mas diante da manutenção do artigo no PL, passaram a defender que os valores sejam direcionados para um fundo de fomento ao jornalismo. Já a Associação de Jornalismo Digital (Ajor) afirma temer que a negociação direta ocorra sem a instituição de mecanismos de transparência sobre valores e critérios.

Retirada de agência fiscalizadora

Um dos cernes originais do projeto era a criação de uma entidade autônoma que teria o poder de instaurar processos administrativos contra as plataformas e aplicar sanções.

No entanto, uma parte significativa da Câmara não manifestou apoio ao artigo que previa essa entidade. A oposição bolsonarista, por sua vez, levantou acusações de que o órgão se tornaria um orwelliano "Ministério da Verdade", motivado por razões ideológicas.

O deputado Orlando Silva optou, então, por retirar a criação da entidade da versão final do texto. Ao anunciar a decisão, ele disse que manter o artigo acabaria inviabilizando a aprovação de todo o projeto de lei.

"Houve muita crítica de diversas bancadas. A minha impressão é que se mantivéssemos essa ideia, poderia interditar o debate e inviabilizar o avanço da proposta", disse.

Defensores e opositores

Em seu relatório, o deputado Orlando Silva mencionou que diversos países, como Alemanha e França, já contam com legislações semelhantes e citou o combate à disseminação de fake news como um dos motivos para a aprovação do projeto.

"A liberdade na internet, embora propiciadora da sociedade em rede e concretizadora de vários direitos fundamentais, traz consigo algumas externalidades negativas. Uma delas são as notícias falsas ou, como têm sido comumente chamadas, as fake news", escreveu o deputado.

O projeto é apoiado pelo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Já as big techs resistem à aprovação e divulgaram notas afirmando que o tema precisava de "mais debate", embora o projeto esteja em discussão há três anos no Congresso e tenha sido tema de audiências públicas.

Segundo o jornal O Globo, representantes de plataformas como TikTok e YouTube procuraram nos últimos dias influenciadores digitais para sugerir que eles se manifestassem contra a tramitação em urgência do projeto.

A bancada de extrema direita do Congresso também vem articulando oposição ao projeto, acusando o texto de ser uma ferramenta de censura e espalhando fake news sobre seu teor.

No final de abril, o ex-procurador da Lava Jato e deputado Deltan Dalllagnol (Podemos-PR), por exemplo, veiculou mensagens em suas redes sociais afirmando que a aprovação da lei levaria à censura da divulgação na internet de certos versículos da Bíblia, ainda que projeto não avançasse sobre a liberdade religiosa.

Em reposta, o deputado Orlando Silva veio a público afirmar que isso não era verdade, e tratou de deixar mais explícito na redação que esse não era o caso.

Autor: Jean-Philip Struck