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Rússia pode ser banida da internet como conhecemos? Entenda

02.mar.22 - Bombeiros trabalham para conter um incêndio na Universidade Nacional Karazin Kharkiv, supostamente atingido durante recente bombardeio pela Rússia - SERGEY BOBOK/AFP
02.mar.22 - Bombeiros trabalham para conter um incêndio na Universidade Nacional Karazin Kharkiv, supostamente atingido durante recente bombardeio pela Rússia Imagem: SERGEY BOBOK/AFP

Felipe Mendes

Colaboração para Tilt, em São Paulo

10/03/2022 13h23Atualizada em 10/03/2022 20h21

Em função da ofensiva russa contra a Ucrânia, grandes empresas de tecnologia estão bloqueando seus serviços online no país governado por Vladimir Putin —Apple, Google e Microsoft são algumas delas. Para completar o cenário de tensão digital, autoridades ucranianas querem que sites russos sejam bloqueados da internet.

O pedido foi feito formalmente à Icann (sigla em inglês para Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números), entidade responsável pela alocação do espaço de endereços do Protocolo de Internet), que negou a solicitação. Mas a questão que fica é: como isso poderia acontecer? Será que é só desligar um botão e desconectar um país todo da rede mundial de computadores?

O que rolou?

Em carta enviada na semana passada ao Icann, o vice primeiro-ministro da Ucrânia, Mykhailo Fedorov, solicita o encerramento dos servidores raiz DNS (Domain Name System, ou Sistema de Nomes de Domínios) na Rússia e a revogação de domínios russos como ".ru" e ".su" — ou seja, um site com o endereço "www.russia.ru" não poderia mais ficar disponível.

Na carta, Fedorov dizia que os "crimes atrozes da Rússia foram possíveis principalmente devido à maquinaria de propaganda russa usando sites continuamente espalhando desinformação, discurso de ódio, promovendo a violência e escondendo a verdade sobre a guerra na Ucrânia".

Em resposta, o Icann informou que não acatou o pedido, mantendo o funcionamento da internet na Rússia. "Como você sabe, a Internet é um sistema descentralizado. Nenhum ator tem a capacidade de controlá-la ou desligá-la", escreveu o presidente-executivo do órgão, Göran Marby, segundo reportagem do site Engadget.

O "poder" do Icann

A internet é uma rede composta por cerca de 60 mil organizações em diferentes locais do mundo. Para funcionar, essas redes ficam interligadas a partir de padrões tecnológicos em comum.

O Icann é responsável pela administração do sistema de nomes de domínio da internet que a maioria das pessoas usa diariamente, a World Wide Web (www).

Esse processo envolve o sistema DNS, um protocolo de computador que traduz o nome de domínio de um site para o endereço real do mesmo, o chamado endereço IP. Este, por sua vez, é uma sequência de números separada por pontos.

Por exemplo: para entrar na página do UOL, você pode digitar www.uol.com.br na barra de URL do seu navegador de internet. Uma vez que o comando é feito, o sistema automaticamente acessa o endereço IP correspondente, como "200.147.67.142". É assim que a tela principal do portal dentro da rede www se abre.

O sistema DNS pode ser resumido então como um grande diretório que organiza todos os nomes de domínios e computadores registrados como pertencentes a uma empresa ou pessoas que utilizam a internet que estamos acostumados.

Ao registrar um nome de domínio, qualquer um pode criar um site na web que ficará acessível no mundo todo. Os tipos de duas letras, como ".ru" e ".su", são designados como domínios de topo (na sigla ccTLDs) e correspondem a um país, território ou outra localização geográfica:

  • Brasil é ".br"
  • EUA é ".us"
  • Itália é ".it"
  • São Paulo é ".sp"... e por aí vai.

Além disso, o Icann é responsável pelas chamadas "chaves da Internet", que não controlam toda a rede mundial de computadores, mas destravam o mecanismo que verifica a autenticidade dos dados que compõem o sistema DNS.

Desligar a internet não é apertar um botão

O professor Carlos Alberto Iglesia Bernardo, coordenador em segurança cibernética da pós-graduação do Instituto Mauá de tecnologia, explica que o cenário de "desligar a internet" na Rússia refere-se a bloqueio de sites na rede www, que é apenas um dos serviços que rodam sobre as camadas de protocolos de comunicação da Internet.

"Embora seja o mais conhecido, há outros como o email, IRC (Internet Relay Chat) e o ftp (transferência de arquivos) que são usados", explica. "Definitivamente não é apenas apertar um botão."

Logo, serviços que funcionam na deep web, uma outra camada da internet chamada popularmente de profunda ou invisível, não seriam afetados.

"A deep web não é algo a parte da Internet, mas [existem] servidores ou outros recursos ligados a ela que estão ocultos, por meio de várias técnicas, aos usuários comuns. Justamente por não contar com a busca pelos nomes, não seria muito afetada pelo bloqueio da resolução de nomes", explica.

Ele ainda destaca que, mesmo se o Icann acatasse ao pedido para bloquear a internet na Rússia, isso não seria tão simples assim.

"Se o domínio usado por um país fosse bloqueado nos servidores DNS que estão no topo da hierarquia DNS (servidores raiz), isso poderia dificultar a navegação, mas não a impediria", explica.

"A navegação pelos endereços IP continuaria funcionando. Interromper a internet [ao menos, tecnicamente] não é nada simples, inclusive porque ela foi concebida para oferecer grande flexibilidade nas rotas de conexão e resiliência a falhas nas redes que a compõe", ressalta.

E se a Rússia fosse banida da www?

O "desligar a internet" na Rússia não seria possível em sua totalidade, mas os impactos caso o Icann aceitasse bloquear endereços do país seriam graves, segundo analistas do setor.

Caso algo mudasse, as informações que circulam na Rússia estariam ainda mais centralizadas nas mãos do governo. Sites russos ficariam então inalcançáveis de fora do país e inacessíveis para alguns dentro do próprio território também, dependendo de como seus IPs fossem configurados.

Em resposta à carta enviada pelo representante da Ucrânia, Bill Woodcock, diretor executivo da Packet Clearing House, uma organização internacional sem fins lucrativos que fornece suporte operacional e segurança para pontos de troca da Internet, afirmou que o pedido da Ucrânia "tornaria a conectividade irregular para muitos usuários na Rússia, mas principalmente para pessoas comuns, não para usuários do governo ou militares".

Em seu Twitter pessoal, ele já havia se manifestado contra o corte. "Como operador de infraestrutura crítica, minha inclinação é dizer "não", independentemente de minhas simpatias", disse ele.

Woodcock ainda afirmou que o pedido da Ucrânia para revogar delegações de endereços de IP para redes russas quebraria a segurança que protege seu roteamento.

"Juntas, essas três ações teriam o efeito de tornar os usuários civis russos da internet muito mais vulneráveis, como os usados credenciais bancárias e senhas de sites", complementou.

O diretor-executivo ainda ressaltou que o pedido da Ucrânia seria ruim a curto prazo, já que tiraria dos russos as informações e perspectivas internacionais sobre a guerra, ficando apenas com "o que o governo russo escolhe dizer a eles". Ele ainda disse que seria ruim a longo prazo, já que abriria um precedente para atuações em conflitos internacionais.

Esse tipo de bloqueio na internet da Rússia só viria agravar os impactos da guerra para a população civil, que já vêm sofrendo com sanções impostas por empresas de tecnologia — algumas usadas popularmente também como fontes de informação

O TikTok suspendeu a transmissão de lives e publicações de vídeos da Rússia — por conta de uma nova lei russa que pune entre outras coisas quem postar que o país está em guerra.

As redes sociais da Meta (Facebook e Instagram), chefiada por Mark Zuckerberg, passaram, por exemplo, a rebaixar globalmente o conteúdo dos meios de comunicação controlados pelo estado russo.

Nesta semana, a empresa Lumem, provedora líder de internet no país, decidiu interromper seus serviços. A decisão foi lida como mais uma medida de isolamento da Rússia do resto do mundo digital.

Rússia poderia ter sua própria internet?

Em 2019, o presidente russo Vladimir Putin aprovou um projeto de lei que institui uma espécie de internet paralela. Mas o desafio técnico, segundo especialistas ouvidos na época, era enorme para que o plano saísse do papel.

A ideia é ter uma infraestrutura própria que permitisse o isolamento do país ao direcionar o tráfego da internet russa para servidores locais. Para isso, criando, por exemplo, um sistema de nomes (DNS) independente.

Para que o país ficasse isolado da rede www, novos serviços teriam que ser criados especificamente para essa nova internet, como buscadores, sites de comércio virtual, redes sociais, entre outros.

Cada dia é um novo desdobramento numa guerra que também traz grandes impactos para o mundo virtual.

*Com matéria de Lucas Carvalho, de Tilt; Matheus Pichonelli, em colaboração para Tilt, e informações de Axios, Cnet e agências de notícias internacionais