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Após 20 anos, Corte julgará queixas de quilombolas sobre base de Alcântara

Instalações do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão  - Walter Campanato/Agência Brasil
Instalações do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no Maranhão Imagem: Walter Campanato/Agência Brasil

Guilherme Tagiaroli

De Tilt, em São Paulo

12/01/2022 12h15Atualizada em 13/01/2022 11h23

O Centro de Lançamento de Alcântara (a 90 km de São Luís), no Maranhão, foi construído na década de 1980 em uma região com várias comunidades quilombolas. Após 20 anos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, ligada à OEA (Organização dos Estados Americanos), informou que julgará as denúncias feitas pelos moradores da região.

Consultada por Tilt, a FAB (Força Aérea Brasileira), responsável pela base, não se pronunciou sobre o caso. O Ministério das Relações Exteriores disse que recebeu uma notificação da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos) de que o caso foi aceito na Corte Interamericana. No entanto, o Estado brasileiro não foi notificado sobre a abertura do caso. Quando isso ocorrer, a pasta informou que tomará as providências apropriadas.

Ainda não há data para o julgamento. De qualquer jeito, a notícia do aceite da denúncia de violação de direitos humanos pela Corte Interamericana foi divulgada por Danilo Serejo, assessor jurídico das comunidades e integrante do Mabe (Movimento dos Atingidos pela Base Espacial de Alcântara).

"A importância disso é que subiu para a Corte e, com isso, o Estado Brasileiro passa a condição de réu e será julgado pelas violações que ocorreram na década de 1980, e que seguem até hoje", disse Serejo em conversa com Tilt.

De forma resumida, são três as denúncias das comunidades quilombolas contra o Estado Brasileiro:

  • Expulsão de 312 famílias com a construção da base na década de 1980;
  • Ausência do título de propriedade dos moradores da região (apesar de ser reconhecido como território quilombola);
  • Falta de consulta à comunidade sobre ações que impactam a vida deles.

Em comunicado, a OEA (Organização dos Estados Americanos) diz que a área das comunidades tradicionais, composta majoritariamente por pessoas de ascendência indígena e africana, foi declarada de "utilidade pública" na década de 1980, desapropriando 32 comunidades quilombolas.

A organização diz que o relatório da CIDH concluiu que o "desenvolvimento da base alterou o modo de vida das comunidades quilombolas de Alcântara, dado que elas se baseiam na troca de bem e recursos, que permitem o desenvolvimento e sobrevivência delas".

O caso foi apresentado em 2001 na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Ele foi admitido em 2006 e vinha sendo analisado desde então, após superar fases e questões administrativas. Após a análise, a denúncia chegou em 5 de janeiro deste ano na Corte, que é um "estágio superior" da organização internacional.

Os detalhes do processo ainda não estão disponíveis. No entanto, durante uma audiência de 2006, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos detalhou alguns dos argumentos do Estado Brasileiro no processo.

O governo, por exemplo, dizia que implementou "ações mitigadoras em favor das comunidades locais", como pagamento de indenizações e revitalização de "agrovilas", onde famílias desempossadas passaram a morar. É dito ainda que o Estado tem adotado "diversas medidas de natureza política dirigidas às comunidades restantes de quilombo".

    Em março de 2019, o Brasil fechou um AST (Acordo de Salvaguardas Tecnológicas) com os Estados Unidos, que permite que o país norte-americano use o local para lançamentos, além de proteger as tecnologias de propriedade dos EUA, e houve pouca interlocução com os moradores da região. O governo brasileiro planejava expandir a área da base, que tiraria mais pessoas dos arredores do local, no entanto, uma decisão de 2020 impediu a remoção de comunidades quilombolas.

    "Não se trata de uma operação imobiliária. Os quilombolas têm direito a propriedade definitiva de suas terras. A remoção indiscriminada desses povos é contra a Constituição e fere acordos internacionais de direitos humanos", diz Priscila Akemi Beltrame, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).

    Além do processo na Corte Interamericana, há um outro tramitando em esfera internacional aberto na OIT (Organização Internacional do Trabalho) por sindicatos de trabalhadores rurais de Alcântara. Nele, argumentam que o Brasil violou uma convenção em relação a descendentes de comunidades de quilombos. Basicamente, a convenção 169 diz que povos originários devem ser consultados de quaisquer mudanças que os afetem.

    O que significa um caso ser julgado pela Corte Interamericana

    "Levar um caso ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos costuma ser usado como alternativa ao sistema judicial interno, após os recursos locais serem esgotados ou o Estado não disponibilizar recursos adequados e efetivos à população", explica a professora da FGV-Rio (Fundação Getúlio Vargas) Paula Almeida, que é especialista em direito internacional.

    Almeida explica que levar o caso para entidades internacionais ajuda também a "atrair a atenção da mídia" e pode "pressionar por mudança na conduta dos estados".

    Geralmente, são selecionados para serem julgados pela Corte casos com potencial de "contribuir para a justiça social, fortalecer a democracia e garantir que países adotem medidas de respeito aos direitos humanos", continua a professora. É comum também a recomendação de reparação de vítimas e a criação de meios para que não haja mais violações.

    Em 2021, por exemplo, o povo Xucuru, de Pernambuco, recebeu indenização do governo após um julgamento da Corte Interamericana realizado em 2018. O Estado Brasileiro foi condenado por ter demorado a demarcar as terras desta comunidade.

    E se o Estado não quiser aceitar a condenação? "Após todo o processo, com direito à defesa, se um país não cumprir o que for determinado, ele teria que renunciar àquele tratado", explica Beltrame, da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil).

    Por que a base de Alcântara importa?

    Pela proximidade com a linha do Equador, o CLA (Centro de Lançamento de Alcântara) tem uma posição geográfica privilegiada. Lançamentos feitos de lá gastam menos combustível que de outras partes da Terra - a economia pode chegar a até 30%.

    Além disso, fica próximo ao porto de São Luís, o que auxilia no transporte de cargas, tem condições climáticas favoráveis e estabilidade geológica.

    Mesmo assim, a base não recebeu grandes missões. Em 2003, durante a tentativa de lançamento de um foguete brasileiro, um incêndio matou 21 pessoas. De 2019 até agora, o Brasil lançou quatro satélites da base, segundo o ministro Marcos Pontes.

    O único satélite brasileiro já lançado, o Amazônia-1, foi ao espaço de uma base da Índia em um foguete de grande porte que levava outros satélites juntos.

    Com o acordo com os EUA, o Governo Brasileiro anunciou contratos com empresas norte-americanas para envio de foguetes pequenos e médios. Hyperion, Orion Ast, Virgin Orbit e C6 Launch devem começar a operar nas instalações da base ainda neste ano.

    Para Serejo, a população quilombola não é contra a base espacial. "Somos contra o acordo com os EUA, pois consideramos que fere a soberania nacional; lançamentos feitos no país deveriam passar pelo crivo da comunidade científica", disse.

    Ele ainda argumenta que a base deveria ser otimizada para melhor uso da estrutura que já existe. "Temos uma base na melhor região do mundo para lançamento de satélites que é sub-aproveitada e ainda querem expandí-la. Estamos falando de um centro de lançamento que nunca foi capaz de lançar um satélite 100% brasileiro".

    Errata: este conteúdo foi atualizado
    Diferente do informado, não foram 23 mortas no acidente em Alcântara, mas 21. A informação já foi corrigida. Além disso, uma nova versão do texto dá mais detalhes sobre o acordo de salvaguardas entre Brasil e Estados Unidos.
    Diferentemente do informado, o acidente que matou 23 pessoas na base Alcântara ocorreu em 2003, e não em 2014.