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Jovem processa 99 por medo de estupro e ferimentos; quem deve ser punido?

Passageira teve medo de ser violentada após motorista não parar ao chegar no destino - Arquivo pessoal
Passageira teve medo de ser violentada após motorista não parar ao chegar no destino Imagem: Arquivo pessoal

Hygino Vasconcellos

Colaboração para Tilt, em Balneário Camboriú (SC)

10/12/2021 04h00

Uma jovem de 22 anos entrou na Justiça de São Paulo contra a empresa 99 e pediu indenização de R$ 100 mil após ficar ferida por pular de um carro em movimento, vinculado ao aplicativo. Ana (nome fictício, a pedido da entrevistada) afirma que saiu do veículo por medo de sofrer algum tipo de violência depois que o motorista não parou no destino final indicado por ela no app.

Ao cair no asfalto, ela fraturou o pulso da mão esquerda e teve escoriações em diversas partes do corpo. A amiga Maria (nome também fictício), de 19 anos, que estava com Ana no carro, bateu a cabeça no chão, teve traumatismo craniano e ficou inconsciente.

"Não lembro de nada depois que eu saltei", contou a mais nova a Tilt. Ela ficou 12 dias em coma e só deixou o hospital quase um mês após o incidente. O processo, iniciado em junho deste ano, é movido apenas por Ana.

Segundo detalhes da ação judicial, à qual a reportagem teve acesso, o motorista João (nome alterado), 25, disse em relato à 99 que "ao se aproximar do ponto de desembarque avistou um homem armado e notou que poderia se tratar de uma 'emboscada', por isso saiu rapidamente do local".

Em nota a Tilt, a 99 lamentou "profundamente o ocorrido com a passageira" e afirmou que o motorista foi banido da plataforma, mas "manifestos adicionais ocorrerão somente nos atos do processo".

No processo, ela alega que é uma empresa de tecnologia, e não de serviço de transporte, que não detém frota de veículos ou motoristas contratados, por isso não poderia ser responsabilizada por ato praticado por usuários cadastrados, sejam passageiros ou motoristas. Argumenta ainda que apenas conecta as partes e é "parte totalmente ilegítima".

A 99 pede sua remoção do processo e a inclusão do motorista, dizendo que não poderia ser considerada uma eventual responsabilidade solidária pois o passageiro "não efetua nenhum tipo de pagamento à 99 pela utilização do aplicativo".

Essa não é a primeira vez que empresas que oferecem serviços de transporte particular tentam se isentar na Justiça da responsabilidade em casos de assédio, estupro e outros tipos de violência ocorridas durante uma viagem, mas este ainda é um terreno incerto que depende muito da avaliação do juiz.

A viagem

A viagem envolvendo as duas jovens e o motorista aconteceu no final da noite de 31 de janeiro deste ano. As amigas chamaram um carro pelo aplicativo da 99 em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo, para ir à casa de um amigo a mais de 20 km de distância, em Santana do Parnaíba, também na região metropolitana.

Maria conta que a viagem começou com o motorista não encontrando o endereço onde elas estavam. "Ele subiu e desceu a rua umas quatro vezes", diz.

Durante o trajeto, as duas disseram que o condutor passou a fazer perguntas sobre a idade que tinham e o que levavam na mochila. "Expliquei que era um narguilé, e ele disse: 'pensei que fosse uma arma'", afirmou Maria. "Ele ficava olhando para a gente a toda hora, ficou fazendo muitas perguntas, algumas estranhas, perguntou se acreditávamos em lendas urbanas", acrescentou Ana, destacando que o clima nesse momento da viagem já "estava tenso".

O trajeto durou pouco mais de 30 minutos. Ao se aproximar do destino final, o motorista chegou a reduzir a velocidade, mas acelerou em seguida, contam. "A gente falou: 'moço, é aqui'. Mas ele continuou acelerando e não falava nada", diz Ana.

"Eu fiquei com medo. No final da rua, há uma região de mata. Quando ele não parou, eu achei que ele ia nos estuprar e matar", completou. "Ela falou para eu pular e pulou primeiro. Só que eu estava em pânico, demorei um tempinho para saltar do carro, já que estava em alta velocidade."

João foi procurado por Tilt para comentar o caso, mas não respondeu até o fechamento da reportagem. No primeiro contato, disse por mensagem que poderia falar "mais tarde", mas parou de responder e ignorou todos os contatos feitos nos dias seguintes.

O condutor não foi ouvido no processo. A 99 tentou, mas o juiz indeferiu o pedido. A companhia compartilhou na ação o que o condutor narrou após o incidente.

Como enquadrar

Não há uma legislação brasileira para avaliar um caso assim. A responsabilidade pelo transporte via aplicativos segue a mesma linha de raciocínio de plataformas de delivery que não se responsabilizam por golpes cometidos por alguns entregadores contra os usuários das plataformas.

Os motoristas são considerados parceiros por essas companhias. Ou seja, eles não possuem vínculo empregatício com as plataformas — como 99, Uber, Cabify, entre outras do ramo. Existem regras que devem ser seguidas para o trabalho, mas eles são independentes para, por exemplo, escolher dias e horários de trabalho e dirigir para mais de uma plataforma se assim desejarem.

Então, há um entendimento por parte das empresas de que os aplicativos são apenas os mediadores de um serviço. Qualquer questão que aconteça envolve apenas o passageiro e o condutor.

Mas, na outra ponta, especialistas em direito destacam que as empresas do setor devem responder, sim. Advogados ouvidos pela reportagem consideram os argumentos da 99 insuficientes, já que a empresa possui uma "responsabilidade solidária" sobre a situação, prevista no Código de Defesa do Consumidor (CDC).

"A responsabilidade deles [99] é objetiva, independentemente de qualquer discussão sobre os motoristas terem vínculo empregatício ou não. Os passageiros não contratam motorista de aplicativo, contratam o próprio aplicativo", explica Enki Della Santa Pimenta, advogado especialista em direito do consumidor.

Sistemas como o da 99 não são apenas plataformas mediadoras, diz a professora de direito Flávia do Canto, da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul). "Esses aplicativos prestam serviço de mobilidade, são fornecedores. E o usuário é o consumidor", explica.

Em sua defesa, a 99 alega que as jovens se colocaram em risco ao saírem do carro em movimento e, por isso, a responsabilidade é delas, o que é previsto no CDC. Os especialistas ouvidos concordam que esta é uma argumentação cabível, mas acham difícil que o juiz acate neste caso.

"O que poderia ser alegado? Que o motorista não abriu a porta, não as empurrou, e que a culpa seria exclusiva delas. Mas ninguém iria fingir algo assim. Eram duas meninas, uma ficou em coma e teve paralisia. Provavelmente, elas pensaram: melhor ter lesões do que ser abusada", explica Pimenta.

Canto ressalta que a tese de culpa exclusiva do consumidor vai depender em muito da interpretação do juiz.

Na ação, os advogados de Ana entendem que a situação fere duas legislações, o CDC (Código de Defesa do Consumidor) e o Código Civil, e consideram que as duas jovens se enquadram como consumidoras de um serviço de "locomoção de um lugar a outro", intermediado pela 99. A empresa, portanto, é responsável pelo caso.

"A partir do momento em que o serviço se inicia, é escolhido um motorista específico que, naquele caso, será o prestador de serviço de acordo com os termos da ré", afirmam os três advogados que assinam a ação. Ele argumentam ainda que a 99, ao cometer ato ilícito ou causar dano a outra pessoa, fica "obrigada a repará-lo", segundo o Código Civil.

Jurisprudência

Em novembro de 2020, a 99 foi obrigada a pagar R$ 7.500 a um passageiro que esqueceu um celular no interior do veículo, na zona leste de São Paulo. Na época, o condutor se comprometeu a entregar o aparelho, o que não ocorreu.

A 99 também alegou que era apenas uma empresa de tecnologia e que a culpa era exclusiva do usuário. Mas, o juiz Flávio Cunha da Silva considerou que empresa cobra dos motoristas conduta de "boa fé, diligência profissionalismo e respeito" e, quando o motorista descumpriu essas obrigações, houve um "defeito" na prestação de serviço, como prevê o artigo 14 do CDC.

"(A 99) recebeu por essa atividade empresarial desempenhada, ainda que por meio do motorista e não diretamente do passageiro, integrando a cadeia de consumo, incidindo, assim, à hipótese as normas de ordem pública do Código de Defesa do Consumidor", observou o magistrado.

A 99 ressaltou a Tilt que tem "ciência da dura realidade da segurança pública no país" e, por isso, procura oferecer opções recursos e tecnologia para tornar a plataforma mais segura.