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Como a tecnologia ajudou a ler cartas lacradas há mais de 300 anos

Reprodução/Nature
Imagem: Reprodução/Nature

Marcella Duarte

Colaboração para Tilt

02/03/2021 14h58

Cartas que não haviam sido lidas por mais de 300 anos —dobradas, seladas e lacradas na Europa, entre os séculos XVII e XVIII— tiveram seu conteúdo finalmente revelado, graças à tecnologia.

Como o papel centenário é muito frágil, qualquer tentativa de abertura poderia destruir as mensagens. A solução foi desdobrá-las virtualmente. Para isso, cientistas usaram uma combinação de imagens de raios-X dental e algoritmos.

O lacre das cartas não foi rompido e elas não foram danificadas de nenhuma forma, preservando, assim, todo o teor histórico e cultural. Até então, a única maneira de ler as mensagens seria cortando o papel.

A equipe examinou um baú dos "correios" da época, cheio de cartas não entregues aos destinatários, que foram enviadas de toda a Europa para a cidade de Haia, na Holanda, entre 1680 e 1706. A Coleção Brienne, como ficou conhecida, contém 2.600 correspondências —das quais 600 nunca foram abertas.

Destas, já foi possível ler uma na íntegra e obter o conteúdo parcial de várias outras. A carta totalmente decifrada data de 31 de julho de 1697. Jacques Sennacques, um profissional jurídico de Lille, na França, solicitava uma certidão de óbito de Daniel Le Pers. Até agora, os historiadores sabiam apenas o nome do destinatário, não o teor da mensagem.

Para conseguir tal feito, os pesquisadores digitalizaram as cartas, dobradas, usando um equipamento de raios-X de alta resolução e sensibilidade, desenvolvido para pesquisas odontológicas do conteúdo mineral de dentes.

Primeiro, eles criaram uma reconstrução 3D dos objetos e das palavras, escritas com tintas à base de metais. Depois, recorreram a um algoritmo para detectar as camadas individuais de papel, analisando a espessura das linhas de vinco —quanto mais grosso, mais camadas envolvidas. Assim, recriaram a sequência das dobras e planificaram a carta no computador.

Cartas bem dobradinhas eram a última moda antes da invenção do envelope moderno. O papel era dobrado diversas vezes, formando fendas e encaixes. Depois, a carta ainda podia ser selada com cera, para mensagens confidenciais ou especiais. A técnica é como uma precursora analógica da atual criptografia.

"Estudar os padrões de dobras e encaixes em cartas históricas nos permite entender as tecnologias usadas para se comunicar", diz Jana Dambrogio, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), principal autora do trabalho.

Além disso, a abertura virtual dessas cartas nos permite dar uma espiadinha no cotidiano de pessoas comuns em um período tumultuado da história da Europa e do mundo. As correspondências físicas cobriam largas distâncias, unindo famílias, comércio e outras atividades.

Este tipo de leitura tecnológica já havia sido utilizado em documentos históricos com uma ou duas dobras —mas nunca algo tão complexo como as cartas da Coleção Brienne. "Este é um tipo diferente de desdobramento virtual, que desdobra letras com travas especiais", diz o coautor Paul Rosin, da Universidade de Cardiff, no Reino Unido.

A pesquisa foi publicada na revista Nature.