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Renato de Castro

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Pessoa inteligente' é quem vive em smart city? Sim, e esta é a sua cara

Ryoji Iwata/ Unsplash
Imagem: Ryoji Iwata/ Unsplash

26/10/2021 04h00

O que faz uma cidade mais inteligente? Essa pergunta não é original, mas continua sem uma resposta unânime. Infelizmente, muitos continuam acreditando que a chamada inteligência urbana vem necessariamente da tecnologia.

Se você já acompanha esta coluna há bastante tempo, sabe que eu não acredito nessa tese e que, inclusive, em diversos textos anteriores tivemos a oportunidade de discutir sobre projetos onde a solução do problema nasceu exatamente da falta de recursos para implementar uma tecnologia específica, como no caso de Kamikatsu, no Japão, que está prestes a ser a primeira cidade do mundo a receber o título de "lixo zero".

Com ou sem o uso de tecnologia, todos os projetos de cidades inteligentes têm um objetivo em comum: a melhora da qualidade de vida das pessoas, é isso que iremos abordar agora no nosso modelo The Neural.

A quarta camada do modelo é composta pelos pilares urbanos contemporâneos. Também conhecidos como verticais da cidade, os pilares dizem respeito às áreas específicas de cada uma das dimensões. Lembram delas?

  • Pessoas (smart people);
  • Convinvência (smart living);
  • Governo (smart government);
  • Economia (smart economy);
  • Meio Ambiente (smart environment) e
  • Mobilidade (smart mobility).

Os pilares podem ser planejados, analisados e medidos pelos seus indicadores de performance (KPIs). Como estamos falando de melhoria da qualidade de vida, começaremos pela dimensão smart people, claro. ;)

Os pilares que compõem a dimensão pessoas podem servir de base para a criação de políticas públicas e estratégias de negócios.

Para a formulação do modelo The Neural foram levados em consideração três elementos principais:

  1. Os três conjuntos de indicadores das ISOs:
    ISO 37120: 2018, cidades e comunidades sustentáveis - indicadores de serviços municipais e qualidade de vida;
    ISO 37122: 2019 - indicadores para cidades inteligentes;
    e ISO 37123: 2019 - indicadores para cidades resilientes;
  2. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas, uma agenda mundial composta por 17 objetivos e 169 metas a serem atingidos até 2030;
  3. Análises preliminares dos impactos da pandemia do covid-19 na vida urbana mundial, baseado no conceito da Economia Km 4.Zero.

Como vimos no texto anterior, as cidades inteligentes são feitas para as pessoas e, por isso, é claro, elas devem estar no centro de qualquer estratégia. O modelo The Neural aponta cinco pilares urbanos que são cruciais no quesito smart people:

I. Desenvolvimento de comunidades

Durante anos, temos investido na construção de novas cidades como solução para o crescimento da população urbana, porém cidades não são feitas somente de asfalto, concreto e vidro.

Ao buscar exemplos mundiais de cidades inteligentes, muitas vezes nos deparamos com projetos chamados greenfield, que são regiões construídas do zero, como é o caso de Songdo, na Coreia do Sul, Masdar, nos Emirados Árabes Unidos e Lusail, no Catar.

Algumas delas ainda estão em processo de construção, como o caso Neon City, um dos gigaprojetos bilionários da Arábia Saudita, e até no Brasil já temos cidades ou novos distritos sendo construídos no modelo smart city, como o projeto de Laguna, no interior do Ceará.

Atrair e reter pessoas em novas cidades e, por fim, criar comunidades têm sido o grande desafio urbano da atualidade.

Apesar de as greenfileds terem tudo pensado minuciosamente na teoria e implementado com rigor na prática —da infraestrutura de telecomunicações ao sistema integrado de transporte público—, muitas são consideradas verdadeiros fracassos por não despertarem nos residentes o sentimento de pertencimento, de comunidade.

Recentemente, a crise mundial de covid-19 destacou a importância do processo comunidade e acelerou a tendência do conceito da economia km 4.zero, citado anteriormente, um novo paradigma que combina o superlocal (km zero) ao hipertecnológico (4.0) e que ajuda a recuperar, ou ao menos mitigar, os efeitos econômicos da pandemia.

II. Sociedade inclusiva

As desigualdades sociais são um tema recorrente nas discussões do processo de evolução das nossas cidades e isso não depende do tamanho delas, pois muitas vezes a origem é a própria formação: pessoas que migram têm cada vez menos chances reais de uma ascensão social e o mesmo ocorre com grupos minoritários da sociedade, historicamente discriminados.

Criar cidades mais inteligentes significa necessariamente criar municípios melhores para todos e os ODS das Nações Unidas abordam esse tema, relacionados a pessoas, em pelo menos quatro objetivos:

  • Objetivo 1 - Erradicação da Pobreza: acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares.
  • Objetivo 5 - Igualdade de Gênero: alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.
  • Objetivo 10 - Redução das Desigualdades: reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles.
  • Objetivo 16 - Paz, Justiça e Instituições Eficazes: promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.

III. Educação

Toda vez que iniciamos um debate sobre as responsabilidades básicas do poder público que afetam, entre outros, a inclusão, chegamos na tríade: educação, saúde e segurança.

Para alguns, ainda existe uma dúvida de qual deveria ser a prioridade, mas essa questão já foi debatida e resolvida ao longo dos últimos 2.500 anos por grandes filósofos:

Educai as crianças para que não seja necessário punir os adultos."

Pitágoras (500 a.C.)

Só a educação liberta."

Epicteto (130 d.C.)

É no problema da educação que assenta o grande segredo do aperfeiçoamento da humanidade."

Immanuel Kant (1750 d.C.)

Educação é fundamental para o desenvolvimento de qualquer estratégia de smart city, e podemos encontrar um total de 13 indicadores específicos dela nas normas ISO da serie 37:100 —seis referentes a serviços municipais e qualidade de vida; três indicadores para cidades inteligentes; e quatro indicadores para cidades resilientes.

Além disso, também temos um Objetivo de Desenvolvimento Sustentável específico para educação:

  • Objetivo 4 - Educação de Qualidade: assegurar a educação inclusiva e equitativa de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos.

IV. Patrimônio e herança histórica

Com foco em crescimento mais acelerado e, principalmente, pela influência dos estilos de vida ocidentais, especialmente o americano, fatores históricos e culturais têm sido negligenciados nas discussões de cidades inteligentes. Mas eles passam a ganhar cada vez mais espaço no momento que estamos vivendo.

Não estamos falando necessariamente de cultura aqui, até porque cultura não é abordada na dimensão das pessoas (smart people), mas sim em convivência (smart living).

Você deve se lembrar que já discutimos a importância do mapeamento do DNA da cidade em um texto anterior e, agora, é hora de introduzi-lo no desenvolvimento das estratégias e políticas do seu projeto de cidade inteligente.

Vamos tomar como exemplo os Emirados Árabes Unidos, que têm o árabe como língua oficial e como disciplina obrigatória nos primeiros 10 anos de escola de qualquer pessoa que lá esteja.

Apesar da obrigatoriedade do ensino do idioma, a esmagadora maioria das escolas são em inglês e, assim, o contato com a língua materna do país é reduzido a menos de duas horas semanais, a habilidade de escrita tem se perdido e, com ela, a história e o sentimento de pertencimento na sociedade local.

Esse resgate às origens, com a valorização do patrimônio material e imaterial local, tem se tornado uma preocupação recorrente em diversos países, dos pequenos aos continentais.

Se por um lado a promoção de uma sociedade diversificada é importante para a economia, por outro, a valorização da herança histórica é fundamental para manutenção da identidade de uma cidade e para o estímulo do sentimento de pertencimento.

V. Aproveitar a vida (life enjoyment)

Por fim, entramos em um tema que tem ganhado muita relevância nos últimos tempos: a felicidade.

Além de polêmico, ele é bastante subjetivo e sua definição varia conforme a ótica de análise. Para Freud, felicidade é um instinto de todo o ser humano de buscar o prazer e tentar evitar o sofrimento. Já a definição do dicionário Oxford é que felicidade é o estado de prazeroso contentamento da mente; profundo prazer ou contentamento com as próprias circunstâncias.

Se considerarmos que a melhora da qualidade de vida nas cidades é o principal objetivo de qualquer projeto de cidade inteligente, o termo felicidade sempre esteve presente em iniciativas desse tipo.

Embora haja uma grande dificuldade de como mensurar esse indicador, é sim possível fazê-lo e já temos até casos de sucesso na implantação de estratégias de felicidade.

Um dos primeiros projetos bem-sucedidos em relação ao uso da felicidade como política de Estado foi lançado em 2016 pelos Emirados Árabes Unidos (EAU).

O Programa Nacional de Felicidade e Positividade (posteriormente renomeado para Programa Nacional de Felicidade e Bem-estar), coordenado pelo Ministério da Felicidade, conta com um índice para medir a satisfação das pessoas em três áreas:

  1. Inclusão da felicidade nas políticas, programas e serviços de todos os órgãos governamentais;
  2. Promoção do bem-estar e felicidade como estilo de vida na comunidade, tanto para os nacionais quanto para os estrangeiros e visitantes;
  3. Desenvolvimento de benchmarks e ferramentas para medir a felicidade.

O modelo The Neural também traz a felicidade como um dos seus indicadores, entre outras maneiras, se apoiando no quesito recreação da série ISO 37100 para o desenvolvimento de estratégias smart city.

É importante darmos bastante atenção a esse ponto, pois, embora posicionado na dimensão pessoas (smart people), ele é um dos mais transversais de todos os 30 descritos no modelo e é influenciado pelas outras cinco dimensões (convivência, governo, economia, meio ambiente e mobilidade).

Como sua cidade está lidando com essas verticais? Você consegue identificar estratégias e políticas públicas claras para todas esses cinco pilares do novo modelo?

O ano de 2022 será importante para o país, pois teremos eleições, então, é o momento propício para trazermos esses temas para as discussões públicas, não acha?

Nos vemos no próximo texto.