Topo

Fora do BBB, cabelo afro é alvo de perseguição histórica no Brasil; entenda

João chegou a chorar ao falar sobre a frase de Rodolffo - Reprodução/Globoplay
João chegou a chorar ao falar sobre a frase de Rodolffo Imagem: Reprodução/Globoplay

Colaboração para o UOL, de São Paulo

10/04/2021 04h00

Nesta semana, um comentário do cantor sertanejo Rodolffo a respeito do cabelo crespo do professor João Luiz, durante o "BBB 21", dividiu o Brasil. De um lado, a parcela que notou o viés racial e manifestou repúdio à atitude racista. De outro, a que não viu maldade na aparente brincadeira e classificou a cena como "mimimi".

Para especialistas consultados pelo UOL, a leitura de que não houve ofensa desconsidera o significado do cabelo para a população negra e o histórico do Brasil de coibir a vida dessas pessoas por meio da pressão estética.

O coletivo Linhagem dos Cabelos, um grupo de nove pesquisadoras acadêmicas de diferentes áreas que estuda estética e relações raciais, explica o que ocorreu: comparar um traço característico de pessoas negras a trejeitos de figuras primitivas sugere uma desumanização. Por si só, isso já explicaria tanto o choro, quanto revolta protagonizados por João. Há ainda um agravante.

Expressões culturais negras são alvo de um apagamento histórico no Brasil

"Se a gente pensar no processo da escravidão, uma das primeiras coisas que aconteciam com escravizados era raspar o cabelo para aniquilar a ideia de pertencimento", explica a antropóloga Larisse Pontes, doutoranda pela Universidade Federal de Santa Catarina.

A educadora popular Layla Maryzandra, especializada em História e Cultura Afrobrasileira, acrescenta que o "cabelo é uma linguagem em diferentes culturas" e repreender essas expressões "faz parte de um processo de subjugar o outro a partir da estética".

Quando a gente não está em paz com a nossa cabeça do lado de fora, o que está acontecendo do lado dentro?
Layla Maryzandra

A professora da Universidade Estadual do Ceará, Tatiana Paz, explica que, para negros, manter os cabelos ao natural é um jeito de resistir a movimentos de opressão. "O corpo foi aquilo que nos restou de riqueza. Por isso, o cabelo é uma afirmação tão importante de uma história que está sempre sendo negada."

Além da escravidão

As tentativas de impedir de negros se sentirem confortáveis com seu corpo não acabaram com a abolição da escravatura, em 1888, ressalta Thiago André, roteirista e fundador do canal História Preta. Essas práticas foram absorvidas pela sociedade brasileira, seja por meio de brincadeiras ou até pela censura.

Ele lembra que Tony Tornado foi retirado de um palco onde se apresentava, em 1972, durante a ditadura militar. Tudo porque o cantor apareceu de punho erguido e cabelo para cima ao lado de Elis Regina, que cantava "Black is Beautiful".

Outra forma de repressão do período era raspar o cabelo de presos políticos, lembra o roteirista. "O black armado para cima tem associação imediata às lutas dos movimentos negros pelo globo. Se você imagina o movimento negro organizado nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, entende o quão fácil eram os policiais identificarem os manifestantes pelo cabelo."

Problema persiste no Brasil

O olhar pejorativo sobre cabelos afro não ficou no passado do país. Em 2017, a dançarina e ativista Bárbara Querino, na época com 20 anos, foi condenada a cinco anos de prisão por um assalto cometido, segundo as vítimas, por alguém de cabelo cacheado. Dona de madeixas encaracoladas, ela foi apontada como a criminosa, apesar de não estar na cidade no dia em que o crime ocorreu.

O roteirista lembra que, para além, dessa coerção institucional, há a pressão para negros se ajustarem a um padrão de beleza. Essa ideia recorre à miscigenação para perpetuar uma hierarquia racial. É por isso, diz, que cortar ou alisar os cabelos é visto como estratégia para ter melhores oportunidades de trabalho e até evitar abordagens policiais. Assumir o afro, por outro lado, significa resistir às regras do jogo.

"O que parece uma mudança de visual, é uma mudança de postura", afirma Neomísia Silvestre, uma das fundadoras da Marcha do Orgulho Crespo, que ocorre todos os anos em São Paulo dele 2015.

Ela é parte da juventude negra dos anos 2000 que se inspirou nos movimentos negros dos anos 60 e 70 para discursos de valorização estética. No Brasil, o senso de afirmação foi fortalecido tanto pelas políticas afirmativas nas universidades quanto pela ampliação do debate racial na internet.

Eventos como a marcha culminaram, por exemplo, na lei que estabeleceu o Dia do Orgulho Crespo no Estado de São Paulo.

As pessoas têm uma ideia de um corpo público que pode ser vendido e examinado como mão de obra. À medida que a gente transforma esse símbolo que é o cabelo, reencontramos nesse mesmo corpo uma outra maneira de existir no mundo e a maneira como ele é. Você acaba saindo daquele corpo público para existir de outra forma
Neomísia Silvestre